O último livro inspirado, para um roteiro nem tanto.
Chega aos cinemas O Livro de Eli, com Denzel Washington como protagonista de uma história toda torta.
A obra tem ares de grande produção, mas nem mesmo esta pretensão soluciona os problemas que o filme apresenta. A fotografia, por exemplo, é pesada, escurecida ao extremo, e isso não é uma virtude. Fosse apenas para retratar o desolado cenário, então até que seria justificado – aliás, os primeiros segundos da aridez de Sangue Negro (2007), só para ilustrar, são mais impactantes do que toda a vã poeira espalhada ao longo deste. Mas o uso em excesso dos tons escurecidos em um filme como este, que se sustenta na ação, gera um certo incômodo, pois nas cenas de luta o espectador tem de ficar caçando os personagens nas sombras. Lembra até aquele duelo fajuto do Surfista Prateado com o Tocha Humana (Quarteto Fantástico 2). Além disso, o filme exibe uma série de clichês. Para você ter uma ideia: a semelhança múltipla com Mad Max (1979), porém muito piorada. Longas rodovias, bandidos em motocicletas, arruaceiros, comida enlatada e inclusive um sujeito, dono de um decadente armazém, que lembra em muito o Tom Waits da seqüência de 1982.
Mas sigamos na trilha do esfarrapado roteiro. Eli, personagem destemperado – o desgastado Washington pouco contribui para o papel –, possui uma Bíblia, livro de inspiração divina, e tudo fará para proteger este que é o último exemplar existente na face da Terra – detalhe: na versão King James. Segundo Eli, a voz de Deus ordenou para que ele seguisse na direção oeste. Em se tratando de fé, o motivo é bastante convincente já que célebres personagens da história extrabíblica foram recrutados em circunstâncias semelhantes. Lutero, Joana D’arc, Santo Agostinho e o Imperador Constantino (o último teve visões), são relatos contundentes de pessoas que mudaram o rumo de suas vidas – e da história – por meio de experiências com o divino, o sobrenatural..
Por outro lado, não muito convincente é o motivo que Carnegie, o líder de uma gangue – Gary Oldman que também poderia ser melhor aproveitado –, adota para justificar seu interesse pelo livro. Segundo ele, o livro irá ajudá-lo na dominação das massas. Mas ao contrário do que a Igreja fazia na Idade Média, quando submetia a população camponesa a uma vida miserável à custa da promessa de uma abençoada vida vindoura, Carnegie já exercia influência sobre os miseráveis de sua cidade maltrapilha através do domínio da água, moradia, comida. Esse tipo de dominação parece ser muito mais incisiva, pois afeta diretamente a sobrevivência da população que, além de não saber ler e escrever, sequer entende a natureza de uma oração. Afinal, orar para quem, quando o conceito de Deus é desconhecido? Fato esse que parece acentuar a bestialização da humanidade. O rude modo de vida (sobrevida?) adotado é pouco promissor para o que parece constituir uma façanha: a espiritualização de informes rochedos humanos. Trata-se de criaturas sobreviventes de uma suposta guerra nuclear de grandes proporções. Importa-lhes preencher o vazio do estômago.
Mas em um dado momento – ambigüidade do roteiro que se reflete no comentário deste – parece haver um resquício do conceito de divindade em certos personagens, que a ele não sabem dar nome. O que leva a pensar se, de modo intuitivo e natural, uma nova religião poderia se desenvolver, o que tornaria Deus, além de divino, necessário. Porém, se a resposta a esta dúvida for afirmativa, então pouco importa o livro de Eli, afinal, Carnegie poderia criar a sua própria religião a partir do tal princípio antropológico de necessidade do divino. E se precisasse ter um livro em mãos, bastaria mandar encapar O Código da Vinci – que no filme ele manda queimar (talvez o melhor momento da película) – e, com esta obra, poderia inventar sermões, criar sua religião e manipular o povo como quiser. Portanto, ter o último exemplar da Bíblia apenas faria diferença se ele fosse um devotado cristão. Mas não é este o caso. Por que alguém se importaria em adquirir um livro autêntico se não irá utilizá-lo respeitando seu conteúdo? Qualquer pedaço de papel pode se transformar em papiro sagrado para aquele que desconhece a escrita e a história por ela relatada. Na Idade Média, até mesmo pedaços de madeira, da suposta cruz do Calvário, eram santificados e vendidos como relíquias sagradas. Aliás, num país sincretista como o Brasil, o uso de amuletos ainda é muito contemporâneo.
Antes de concluir, esboço três erros no roteiro, sob o ponto de vista bíblico, evidenciando suas contradições internas, que anulam a mensagem do livro que o próprio roteiro sugere ser importante para a humanidade:
1 – Não haverá um pós-apocalipse. O apocalipse ocorrerá uma vez. E será suficiente. A ideia de um recomeçar civilizatório puramente humano é, em suma, puramente humano. E no Apocalipse não serão os humanos a decidir isto ou aquilo. Ou então estamos falando de algum evento em menor escala que irá anteceder o Apocalipse. Mas isso não é nenhuma novidade, mas apenas o início das dores, retratado nos evangelhos.
2 – A Bíblia não é mediadora da salvação da humanidade. Ela mesmo afirma isso, quando atribui este papel a Cristo. A Bíblia registra a vontade de Cristo. Mas ela não é o Cristo. Além do mais, mesmo se todas as Bíblias fossem queimadas – o que é muito estranho já que é um dos livros mais lidos do mundo – , isso não mudaria o fato de que Deus continuará existindo e declarando sua glória de muitas outras maneiras (Salmo 19 e Romanos1-20), como de fato o fez ao “conversar” com o Eli. Mesmo porque a Bíblia anuncia uma redenção que se cumprirá em Cristo.
3 – O fato de o protagonista ter uma Bíblia não lhe dá direito de sair por aí matando as pessoas, mesmo que criminosas. Na verdade, a Bíblia foi escrita para pessoas como aquelas que Eli matou: bêbados, assassinos, ladrões, criminosos. Pessoas pecadoras que, como eu e você, necessitam do perdão divino. Pessoas como o protagonista, perdidas. Portanto, Eli não entendeu a mensagem bíblica. Preocupado com sua missão, não pensou duas vezes antes de cortar ao meio quem lhe atravessasse o caminho, embora tenha dito que aprendeu – após 30 anos vagando e lendo o livro todos os dias – a se importar com os outros. O correto seria que, ciente do conteúdo dos textos em que medita, Eli evangelizasse as pessoas que encontrasse pelo caminho, no mesmo oeste que lhe fora destinado.
Concluindo:
Imprimir a Bíblia não fará diferença se não houver público para lê-la. Entretanto, se no filme já havia um lugar onde tantos outros livros já estavam sendo preservados, pode-se deduzir que o letramento das massas havia sido iniciado. Isso significa que, após algumas décadas, as pessoas voltarão a ler e a escrever. Enfim, após gerações de cultura oral, teríamos a cultura escrita novamente, e a Bíblia será novamente um livro adotado tanto em igrejas quanto em universidades e estantes. Como já é hoje! Ou seja, não houve nada de redentor na missão de Eli ! Ponto final.
Portanto, é apenas entretenimento, porém de má qualidade. O que é uma pena, já que a ideia original era promissora e, em mãos mais hábeis, poderia se tornar efetivamente relevante.
Mas havia me esquecido. Assim como no filme, o gado da cultura oral e visual respira o mesmo ar empoeirado que os sobreviventes daquele pseudo-apocalipse. Olhos e ouvidos são os estômagos de agora, e estão famintos, sedentos. A coerência da história não importa, e sim as imagens e sons. Nesse caso, o banquete é garantido.
A obra tem ares de grande produção, mas nem mesmo esta pretensão soluciona os problemas que o filme apresenta. A fotografia, por exemplo, é pesada, escurecida ao extremo, e isso não é uma virtude. Fosse apenas para retratar o desolado cenário, então até que seria justificado – aliás, os primeiros segundos da aridez de Sangue Negro (2007), só para ilustrar, são mais impactantes do que toda a vã poeira espalhada ao longo deste. Mas o uso em excesso dos tons escurecidos em um filme como este, que se sustenta na ação, gera um certo incômodo, pois nas cenas de luta o espectador tem de ficar caçando os personagens nas sombras. Lembra até aquele duelo fajuto do Surfista Prateado com o Tocha Humana (Quarteto Fantástico 2). Além disso, o filme exibe uma série de clichês. Para você ter uma ideia: a semelhança múltipla com Mad Max (1979), porém muito piorada. Longas rodovias, bandidos em motocicletas, arruaceiros, comida enlatada e inclusive um sujeito, dono de um decadente armazém, que lembra em muito o Tom Waits da seqüência de 1982.
Mas sigamos na trilha do esfarrapado roteiro. Eli, personagem destemperado – o desgastado Washington pouco contribui para o papel –, possui uma Bíblia, livro de inspiração divina, e tudo fará para proteger este que é o último exemplar existente na face da Terra – detalhe: na versão King James. Segundo Eli, a voz de Deus ordenou para que ele seguisse na direção oeste. Em se tratando de fé, o motivo é bastante convincente já que célebres personagens da história extrabíblica foram recrutados em circunstâncias semelhantes. Lutero, Joana D’arc, Santo Agostinho e o Imperador Constantino (o último teve visões), são relatos contundentes de pessoas que mudaram o rumo de suas vidas – e da história – por meio de experiências com o divino, o sobrenatural..
Por outro lado, não muito convincente é o motivo que Carnegie, o líder de uma gangue – Gary Oldman que também poderia ser melhor aproveitado –, adota para justificar seu interesse pelo livro. Segundo ele, o livro irá ajudá-lo na dominação das massas. Mas ao contrário do que a Igreja fazia na Idade Média, quando submetia a população camponesa a uma vida miserável à custa da promessa de uma abençoada vida vindoura, Carnegie já exercia influência sobre os miseráveis de sua cidade maltrapilha através do domínio da água, moradia, comida. Esse tipo de dominação parece ser muito mais incisiva, pois afeta diretamente a sobrevivência da população que, além de não saber ler e escrever, sequer entende a natureza de uma oração. Afinal, orar para quem, quando o conceito de Deus é desconhecido? Fato esse que parece acentuar a bestialização da humanidade. O rude modo de vida (sobrevida?) adotado é pouco promissor para o que parece constituir uma façanha: a espiritualização de informes rochedos humanos. Trata-se de criaturas sobreviventes de uma suposta guerra nuclear de grandes proporções. Importa-lhes preencher o vazio do estômago.
Mas em um dado momento – ambigüidade do roteiro que se reflete no comentário deste – parece haver um resquício do conceito de divindade em certos personagens, que a ele não sabem dar nome. O que leva a pensar se, de modo intuitivo e natural, uma nova religião poderia se desenvolver, o que tornaria Deus, além de divino, necessário. Porém, se a resposta a esta dúvida for afirmativa, então pouco importa o livro de Eli, afinal, Carnegie poderia criar a sua própria religião a partir do tal princípio antropológico de necessidade do divino. E se precisasse ter um livro em mãos, bastaria mandar encapar O Código da Vinci – que no filme ele manda queimar (talvez o melhor momento da película) – e, com esta obra, poderia inventar sermões, criar sua religião e manipular o povo como quiser. Portanto, ter o último exemplar da Bíblia apenas faria diferença se ele fosse um devotado cristão. Mas não é este o caso. Por que alguém se importaria em adquirir um livro autêntico se não irá utilizá-lo respeitando seu conteúdo? Qualquer pedaço de papel pode se transformar em papiro sagrado para aquele que desconhece a escrita e a história por ela relatada. Na Idade Média, até mesmo pedaços de madeira, da suposta cruz do Calvário, eram santificados e vendidos como relíquias sagradas. Aliás, num país sincretista como o Brasil, o uso de amuletos ainda é muito contemporâneo.
Antes de concluir, esboço três erros no roteiro, sob o ponto de vista bíblico, evidenciando suas contradições internas, que anulam a mensagem do livro que o próprio roteiro sugere ser importante para a humanidade:
1 – Não haverá um pós-apocalipse. O apocalipse ocorrerá uma vez. E será suficiente. A ideia de um recomeçar civilizatório puramente humano é, em suma, puramente humano. E no Apocalipse não serão os humanos a decidir isto ou aquilo. Ou então estamos falando de algum evento em menor escala que irá anteceder o Apocalipse. Mas isso não é nenhuma novidade, mas apenas o início das dores, retratado nos evangelhos.
2 – A Bíblia não é mediadora da salvação da humanidade. Ela mesmo afirma isso, quando atribui este papel a Cristo. A Bíblia registra a vontade de Cristo. Mas ela não é o Cristo. Além do mais, mesmo se todas as Bíblias fossem queimadas – o que é muito estranho já que é um dos livros mais lidos do mundo – , isso não mudaria o fato de que Deus continuará existindo e declarando sua glória de muitas outras maneiras (Salmo 19 e Romanos1-20), como de fato o fez ao “conversar” com o Eli. Mesmo porque a Bíblia anuncia uma redenção que se cumprirá em Cristo.
3 – O fato de o protagonista ter uma Bíblia não lhe dá direito de sair por aí matando as pessoas, mesmo que criminosas. Na verdade, a Bíblia foi escrita para pessoas como aquelas que Eli matou: bêbados, assassinos, ladrões, criminosos. Pessoas pecadoras que, como eu e você, necessitam do perdão divino. Pessoas como o protagonista, perdidas. Portanto, Eli não entendeu a mensagem bíblica. Preocupado com sua missão, não pensou duas vezes antes de cortar ao meio quem lhe atravessasse o caminho, embora tenha dito que aprendeu – após 30 anos vagando e lendo o livro todos os dias – a se importar com os outros. O correto seria que, ciente do conteúdo dos textos em que medita, Eli evangelizasse as pessoas que encontrasse pelo caminho, no mesmo oeste que lhe fora destinado.
Concluindo:
Imprimir a Bíblia não fará diferença se não houver público para lê-la. Entretanto, se no filme já havia um lugar onde tantos outros livros já estavam sendo preservados, pode-se deduzir que o letramento das massas havia sido iniciado. Isso significa que, após algumas décadas, as pessoas voltarão a ler e a escrever. Enfim, após gerações de cultura oral, teríamos a cultura escrita novamente, e a Bíblia será novamente um livro adotado tanto em igrejas quanto em universidades e estantes. Como já é hoje! Ou seja, não houve nada de redentor na missão de Eli ! Ponto final.
Portanto, é apenas entretenimento, porém de má qualidade. O que é uma pena, já que a ideia original era promissora e, em mãos mais hábeis, poderia se tornar efetivamente relevante.
Mas havia me esquecido. Assim como no filme, o gado da cultura oral e visual respira o mesmo ar empoeirado que os sobreviventes daquele pseudo-apocalipse. Olhos e ouvidos são os estômagos de agora, e estão famintos, sedentos. A coerência da história não importa, e sim as imagens e sons. Nesse caso, o banquete é garantido.
betão agora tendo lido o artigo sobre o filme concordo em vários pontos , sobre a cor opaca na direção de fotografiae o mal uso da mesma, sobre os equívocos bíblicos aplicados nunm cntexto pós-apocalíptico levantando mais um clichê TERMINATOR hsiauhsiahsi, entre uma outra série de comentários, sobre as questões bíblicas acho que serilegal enfatizar qeu talvez a proposta de ELI seja seguir em sua CRUZADA solitário e no fim encontra algo que dá um gancho no queixo dele ... ams é prosa pro ao vivo e não por aqui! ótimo blog meu querido, ótimo post, favoriteio-o no meu! depois falamos-nos!^^
ResponderExcluirsee you betão e continue sendo!