sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Filme: Tropa de Elite 2




Fiquei intrigado com a grande fila de espera para a sessão de cinema em uma sexta-feira à noite. Aos que retornavam insatisfeitos da bilheteria esgotada, os ingressos nas mãos dos adolescentes na fila pareciam artigos de luxo. E detalhe: as duas salas estavam lotadas! Tratava-se do lançamento do filme Tropa de Elite 2. A agitação se mostra interessante por dois motivos. Primeiro, por se tratar de um filme brasileiro. Segundo, por não ser um filme caça-níquel sobre espiritismo, o mais novo câncer cor-de-rosa da nossa triste nação idólatra capitaneado pelos escritos do charlatão Xavier. Não, dessa vez era um filme sobre policiais corruptos e bandidos inocentes, tráfico de drogas, milícias e articulações políticas.
Não tendo conseguido ingresso na noite de lançamento, retornei no dia seguinte, à tarde. Desta vez, de forma muito mais tranqüila, o filme começa para uma plateia de vinte e poucas pessoas. Adultos lançados na matinê. E o filme começa.
A abertura de Tropa 2 é estranha. Aquela medonha música tema retorna e é entrecortada por flashes que relembram trechos do primeiro. Ninguém começa filmes deste jeito. É cafona, é verdade, como o próprio subtítulo “o inimigo agora é outro”. Mas dá certo. A partir daí, como no anterior, a narrativa da história é realizada pela voz do Capitão Nascimento. Diga-se de passagem, é um cabide, já que a história deveria ser capaz de se desenvolver sozinha. Tudo bem. Afinal, o Capitão – uma década e alguns anos mais velho – é um bom contador de histórias e ponto. Então o filme prossegue. Cenas de tiroteios nas favelas, helicópteros sobrevoando as casas, as quadras de futebol, muita tensão, diálogos chulos e guitarras pesadas trespassando as cenas mais impactantes. Mas diferentemente dos “momentos Charles Bronson” do primeiro, esta seqüência soa como um daqueles filmes cult que, no início da proliferação das locadoras de filmes em VHS, ficariam melhor instalados na seção “policial”. Isso por conta de haver diálogos mais longos, elaborados, e o roteiro ser mais robusto, mesmo com algumas passagens apelativas, como no drama familiar do protagonista, em que sua ex-esposa se torna mulher de um sujeito que ganha a vida contestando a atuação repressiva de grupos como o BOPE.
Por causa desse personagem, aliás, Nascimento é retirado das ruas e, através de uma jogada política, é promovido. Assim, passa a atuar na Secretaria de Segurança do Estado, na área de Inteligência. Função muitas vezes burocrática, suas investigações o conduzem às ramificações do mundo do crime, materializado nas instâncias mais carentes da sociedade e sustentado por um sistema corrupto, que acoberta seus mentores. De policiais a políticos influentes, ninguém é inocente. A grandiosa cena em que a câmera sobrevoa o Congresso Nacional em Brasília sob um discurso anticorrupção de Nascimento, é um clichê que todo cineasta que se preze gostaria de cometer. É a cena da vez. E em um ano eleitoral, isso não é pouco. Muitas verdades são ditas, e a ideia de justiça é renovada. Ninguém estar acima da lei, este seria um ideal a ser perseguido e adotado. Parece ser esta a mensagem. Quem não gostaria de surrar um parlamentar? Eu sei, é um pensamento perigoso, mas o Capitão Nascimento realiza nosso desejo. Comento com um amigo, na poltrona ao lado – que curiosamente é delegado, em outra cidade – “se essa moda pega”. Ele concorda: “ah, se essa moda pega...”.
O Nascimento, de Wagner Moura, lembra muito o inspetor que sofria de úlcera, interpretado por José Mayer, em Agosto, de Rubem Fonseca. São personagens fortes, tensos, que parecem reconhecer nos impulsos, ainda que irracionais, a resposta mais adequada a nossa sede de justiça. E muitas vezes, durante o filme, incorporamos esta atitude. Neste sentido, digno de nota é o parceiro de Nascimento, André, estereótipo do brasileiro herói e anônimo, que tem de vencer um leão por dia. Sua ética, na prática, produz boas reviravoltas na trama, garantindo momentos eletrizantes, que são os que irão prevalecer ao término do filme.
O resultado final é satisfatório, tanto como ficção quanto como instrumento reflexivo da realidade, capaz de suscitar debates sobre pontos tão complexos quanto múltiplos acerca do crime organizado, da justiça e política no país.
Volto pra casa pensando na divulgação da mídia, na lotação das salas dos cinemas país afora, e na significativa parcela de espectadores que não irá gostar do filme. Talvez ele traga falatório demais, provocações demais. Pouco afeito aos questionamentos de dualismos fáceis, seria o público capaz de compreender a obra? Sim, se considerarmos as leituras críticas dos mais amadurecidos, e não, se considerarmos que as feições de produto pop que a mídia vem concedendo ao filme são enganosas, equivocadas. Seja como for, Capitão Nascimento, definitivamente, não é Chico Xavier. Isso já é um bom começo.

Crônica: Café em Cabul



[Uma crônica tricordiana]


O som, como o de uma imensa vassoura, vinha da rua, através da janela. Disso falamos na cafeteria. A previsão, no telejornal, anunciava uma terça-feira fria e, depois de sessenta e alguns dias de espera, chuva. A possibilidade é comemorada. O telhado estava apinhado das folhas secas do jardim empoeirado do terreno ao lado. Ruas vazias. Dizem por ...
Dizem por , de uns dias para . Falam sobre uma ideia estranha de que para vencer na vida você tem de ir embora, para outra cidade. Passar em algum concurso e ter um emprego destes que você tem o salário de uma pessoa adulta, um salário que não seja feminino, do tipo que para pagar a assinatura da Marie Claire. Assim, pode-se até comprar um carro. E ir a festas tolas para conhecer alguém interessante. Parece não fazer sentido. Nas horas vagas, como ao voltar pra casa, pensar em casamento, de modo diferente de tudo até então, com o pôr-do-sol migrando do asfalto ao pára brisa e, depois, avermelhando-se no retrovisor. Há muitas formas de se evadir nesta vida. Ir a eventos culturais, ou não. Ir a shows de cowboys, ou não. Ir se entediar com Beethoven, ou não. Certa vez eu desejara ver aquele Ozzy do início, ao vivo, no campo de futebol do bairro, erguendo seus braços envoltos naquelas largas camisas desfiadas por longas barbatanas, como a dos apaches das historinhas do Tex. E ficaríamos aplaudindo riffs de jurássicas gargantas, instrumentos e suas impressões de sinos, de parafusos soltos na madeira corroída, gasta, velha, esfarelando. E isso resgataria, de algum lugar, um passado volitivo. Em nós.
Tapar os ouvidos, a ponto de ouvir somente o que interessa. Isto não se faz, não no deserto. Por enquanto ainda temos o cinema. Os Iñarritu, quando chegam, costumam durar uma semana. E as poltronas ficam ali, estáticas diante da tela. Boquiabertas, sem som possível. E desse modo, também eu, neste último Chris Nolan.
A ideia de que a cidade é um vilarejo-prisão, quem incutiu em nós? Nas ruas sujas centrais, penso no pavor que deve ter sentido D.João VI em 1808 ao chegar ao Rio de Janeiro, muito menor que Três Corações... mas continuamos a não ter realeza, aqui... e a Europa, dizem, nunca fora um lugar muito limpo, como a China daquela época, ou as ruas do império asteca antes dos espanhois.
Nos acostumamos às aberrações, então me lembro que amanhã, pela manhã, os varredores de rua estarão recolhendo todo o fruto cultural de nossa Bienal dos botecos, da propaganda de supermercados, lojas, consultórios odontológicos e candidaturas. Poderíamos ser melhores do que isso? Não me faça mais perguntas. Não tão difíceis.
Nas vilas, as crianças resmungam. As bolas ricocheteiam nas grades, na quina das calçadas. Os caminhões desaparecem na fumaça dos ninjas. O vento está acontecendo. No seu cabelo. Ou no seu riso de buquê de flores. Nas mãos dadas do bebê de colo com sua mãe, no ponto de ônibus. Sabem disso os idosos, admirando-se. Sabem os tímidos ipês de uma rua em reforma, esburacado Afeganistão nosso de cada dia.
Há duas árvores que se curvaram, diante da torrente do rio. Um ritmo ditado em silêncio. E entre nove e dez da manhã, elas ficam luzentes. Como um cartão postal destinado a felizes andarilhos, é o único lugar sob a ponte que vale a pena ser visto.
Não temos tempo para nós. Porque não vivemos neste tempo. Somos pessoas sem fim. Reticências, em nossas camisetas, nos fariam personagens dos quadrinhos, heróis com seus símbolos e finalidades. Então, enquanto lanço meu iô-iô, o presente-sônico, o hoje-agora, o eco ressoa. Sons. Que sons. Que somos.
Uma mão muito invisível levava a rua, para baixo e para cima. E depois de muito tempo, a água escoava. E ouço o som da chuva.

Roberto Ferreira: afegão tricordiano.