domingo, 30 de maio de 2010

O Blog recomenda:









Classicos Abril Coleçoes





CRIME E CASTIGO
1o. e 2o. volumes:
R$ 14,90


A introdução em quatro versões.

Numa dessas tardes mais quentes dos princípios de julho, um rapaz saía do pequeno quarto que alugara, no Beco S., dirigindo-se, o passo tardo, vacilante, para a ponte K. Teve sorte por não encontrar, na escada, a senhoria.
A água-furtada ficava no alto de uma casa enorme, de cinco andares, e parecia mais um armário do que um cômodo habitável. A criatura que lhe alugara o cubículo, com comida e serviços da empregada, morava, justamente, logo embaixo, de maneira que era obrigado, toda vez que saísse, a passar pela frente da respectiva cozinha, cuja porta, geralmente escancarada, dava para a escada. Nessas ocasiões, sua expressão se contraía e vinha-lhe, sempre, aquela vaga sensação mórbida de pavor, que o humilhava. É que, devendo alguns meses de aluguel, receava encontrá-la.

Abril Coleções – Trad. Rosário Fusco


Em um maravilhoso entardecer de julho, extraordinariamente cálido, um rapaz deixou o quarto que ocupava no sótão de um vasto edifício de cinco andares no bairro de S*** e, lentamente, com ar indeciso, se encaminhou para a ponte de K***.
Teve a felicidade, ao descer, de não encontrar a senhoria, que morava no andar inferior. A cozinha, cuja porta estava sempre escancarada, dava para as escadas. Sempre que se ausentava, via-se o moço na contingência de afrontar as baterias do inimigo, o que o fazia passar pela forte sensação de quem se evade, que o humilhava e lhe carregava o sobrecenho. Devia uma quantia considerável à locatária e receava encontrá-la.


Ediouro-Trad. Luiz Cláudio de Castro.

Nos começos de julho, por um tempo extremamente quente, saía um rapaz de um cubículo alugado, na travessa de S..., e, caminhando devagar, dirigia-se à ponte de K...
Discretamente, evitou encontrar-se com a dona da casa na escada. O tugúrio em que vivia ficava precisamente debaixo do telhado de uma alta casa de cinco andares e parecia mais um armário do que um quarto. A mulher que lho alugara, com refeição completa, vivia no andar logo abaixo, e, por isso, quando o rapaz saía tinha de passar fatalmente diante da porta da cozinha, quase sempre aberta de par em par sobre o patamar. E todas as vezes que procedia assim sentia uma mórbida impressão de covardia, que o envergonhava e fazia franzir o sobrolho. Estava zangado com a dona da casa e tinha medo encontrá-la.

Editora Nova Cultural – Trad. não mencionada.


Nos começos de julho, numa tarde muito quente, um rapaz saía de um cubículo alugado, na travessa de S*** e, caminhando devagar, dirigiu-se à ponte de K***.
Discretamente, evitou encontrar-se com a dona da casa na escada. O quarto em que vivia ficava precisamente debaixo do telhado de uma alta casa de cinco andares, e parecia mais um armário do que um quarto. A mulher morava no andar logo abaixo, de maneira que, quando o rapaz saía, tinha de passar fatalmente diante da porta da cozinha, quase sempre aberta. Nessa hora, sempre experimentava uma sensação de covardia, que o envergonhava.


Edições de Ouro – Recontado por: Carlos H.Cony.

pauta









a pauta

os rascunhos

anotaçoes no caderno do tempo

notas musicais

pássaros num dia nublado

Um livro. O livro:


















Iluminuras – gravuras coloridas
Arthur Rimbaud

Obra escrita entre 1873 e 1875, antes de Rimbaud partir para a Abissínia.



A uma razão

Um toque de seus dedos no tambor detona todos os sons e inicia a nova harmonia.

Um passo seu é o levante de novos homens e sua marcha.

Sua cabeça se vira: o novo amor! Sua cabeça se volta, ― o novo amor!

“Mude nossa sorte, livre-nos das pestes, a começar pelo tempo”, cantam essas crianças. “Não importa onde, eleve a substância de nossas fortunas e desejos”, lhe imploram.

O sempre chegando, indo a todo canto.


Ed.Iluminuras. Trad. Rodrigo Garcia Lopes/Maurício Arruda Mendonça

Sunset












Do que tendes a dizer
e que ainda não desvendo

diz-me
todo o tempo
no teu poente lúgubre

e diz
diz
dizer por acabar

o que
em teu todo

é
o que finda
e o que irá ficar

domingo, 23 de maio de 2010

Música: Falling



Falling

Caindo

(Florence and The Machines)



I've fallen out of favor and I've fallen from grace
Eu caí em desgraça e perdi meu encanto
Fallen out of trees and I've fallen on my face
Caí de árvores e cai de cara
Fallen out of taxis, out of windows too
Caí de taxis, e janelas também
Fell in your opinion when I fell in love with you
Caí no seu conceito quando me apaixonei por você

Oh oh oh oh oh oh oh oh oh oh

Sometimes I wish for falling, wish for the release
Às vezes desejo cair, desejo libertação
Wish for falling through the air to give me some relief
Desejo cair no ar para me dar algum alívio
Because falling's not the problem, when I'm falling I'm at peace
Porque cair não é o problema, quando estou caindo estou em paz
It's only when I hit the ground it causes all the grief
Apenas quando chego ao chão que sinto a dor

Oh oh oh oh oh oh oh oh oh oh

This is a song for a scribbled-down name
Esta música é para aquele que rabisquei o nome
And my love keeps writing again and again
E meu amor continua a escrevê-lo de novo e de novo

And again and again and again and again
De novo e de novo, e de novo e de novo

I dance with myself, I drunk myself down
E danço comigo mesma, eu me embriago
Found people to love, left people to drown
Acho pessoas para amar, deixo pessoas se afogar
I'm not scared to jump, I'm not scared to fall
Não tenho medo de pular, não tenho medo de cair
If there was nowhere to land I wouldn't be scared at all
Se não houvesse aonde cair não teria medo algum

At all
Medo algum


Cd - Lungs [Esta preciosidade veio do amigo Márcio Tadeu]

Reflexão:

por Prof.João Pedro

"Nossos políticos apesar de serem de lados opostos, se dedicam pura e simplesmente em uma só maneira de fazer “politicagem”. O que nos parece é que todos eles são da mesma linha, e que linha é essa? Exatamente caro leitor, podemos perceber que ainda vivemos resquícios do Coronelismo em nossa cidade, ou seja, são políticos (ou que dizem ser) que fazem suas obras ou conquistas retribuindo alguns favores, nunca pensando no lado coletivo. Nunca querem beneficiar a maioria, e sim sempre algum parente ou algum amigo. Não estão aqui para fazer o bem a todos, mas, e torno a repetir, só pra alguns.
Talvez por isso, estejamos aqui “emperrados” no mesmo lugar há pelo menos 20 ou 30 anos."


Extraído do texto:"23 de Setembro". Reprodução autorizada.

Enquanto isto, na TV: "Reine Sobre Mim".

Reine sobre mim
A história de Charlie, um homem que, traumatizado pela trágica perda da família, adota uma vida reclusa, caracterizada por dissimulações e lacunas da memória. Após alguns anos, Johnson, um amigo de faculdade, o reencontra e tenta ajudá-lo. No processo, compreende que crises e decepções não são conceitos tão distantes assim de sua realidade, aparentemente estável.
Um belo filme sobre amizade e recomeços.









Ponto alto:
- Adam Sandler, impressionante.
- O ator Don Cheadle.
- Os diálogos instrospectivos.
- Os diálogos nostálgicos sobre bandas e discos de vinil.
- Johnson e Charlie tocando bateria e guitarra, e jogando videogames.
- A trilha sonora, que inclui “Stop Your Sobbings” do Pretenders.

Curiosidades:
- A tragédia em questão é a de 11 de Setembro, dos atentados terroristas no World Trade Center. Diferente do habitual, que oscila entre atos heróicos e revanchismos bélicos, aqui vemos o impacto do episódio na vida pessoal do personagem, sua história e seus dramas particulares.

- Repare na semelhança de Adam Sandler com Bob Dylan, na capa de Blonde On Blonde (1966).

sábado, 22 de maio de 2010

Versículo da semana:


2Coríntios 7:10


A tristeza segundo Deus não produz remorso, mas sim um arrependimento que leva à salvação, e a tristeza segundo o mundo produz morte.



Gramíneo









fica comigo
grama de jardim
sol que arde
poeira, terra, areia

tudo voa mesmo o vento

minhas mãos agarram o chão
escavam até a raiz do domingo

esse é o dia
a folha de papel
o diário
a foto no jornal
antiga e
ainda quente
viva pele

imagens falando
ao corpo pueril
blusa de malha na manhã

queria abraçar este céu.


Frase:



- Não parta, em silêncio...


[Don't walk away, in silence...]


Atmosphere - Joy Division

Filmes de ontem e hoje:




SANGUE NEGRO

"Lobos em pele de lobos"


Como se a realidade fosse feita de um total negrume e tudo o que houvesse no pensamento adormecido do universo fosse um quadro negro e estático, as imagens vão queimando a tela, intrusa aparição, ferida que ao se abrir cria figuras, objetos, cenários, seres humanos. Existe o deserto, existe o petróleo. E existe o homem. Existe a dor deste invasor ante a monstruosidade de uma luz que parece pecar, suando-lhe nas faces, afogando-o no pó, no árduo trabalho de garantir sua sobrevivência. Existe o escândalo das coisas silenciosas, e existe o silêncio, propriamente dito, da pequenez da vida humana.
Assim, surgem os primeiros, longos e silenciosos minutos de Sangue Negro. Inesquecível como em 2001-Uma Odisséia no Espaço, de Kubrick. Mensagem direta que percorre todo o filme: a aridez humana, do deserto, do solo, do homem horizontal.

Daniel Day-Lewis incorpora o personagem, Daniel Plainview. Ganancioso, astuto, uma serpente rastejante, esgueirando-se nas imundícies do lodo negro, lamaçal que lhe é a razão de viver, de onde extrai sua fortuna, mesmo que precise fazer uso do angelical rosto do filho adotivo em seu favor. Lobo na pele de lobo, apoiando-se na pureza de um cordeiro para obter vantagem nas negociações. O ápice da relação entre pai e filho lembra os momentos brutos de “Carta ao Pai”, de Kafka. Na cena crucial que expõe suas divergências morais, o pai e o já adulto filho, protagonizam o diálogo de libras (linguagem de surdo-mudo) mais visceral da face da terra. Diálogos que pontuam o filme, poderosos, nunca desperdiçados, tão cortantes quanto confessionais. Às vezes são usados para preparar o terreno. Outras, para disparar o vigor de sua franqueza atroz. Vejo o pior das pessoas, diz Day-Lewis. Apenas quero enriquecer e me isolar, confessa o magnata do petróleo. Um reconhecimento de que, mesmo rico, é incapaz de lidar com o poço negro que constitui sua amarga personalidade. Contrariando sua ascensão social, seu lado emocional despenca num abismo corroído, já que não pode comprar a paz interior, resgatar a harmonia familiar ou, simplesmente, ter amigos. Junto a Plainview, o jovem pastor Eli, empenhado na construção da Igreja da Terceira Revelação; também sem escrúpulos e ambicioso, cuja retórica constitui um entrave aos planos de Plainview, exceto se fizerem um acordo, óbvio. Entre os dois, cenas pungentes, confrontos, fé, hipocrisia e culpa. A redenção que se encontra somente quando não se tem para onde ir. Somado a isto, o pano de fundo da construção de uma nação: religião e capitalismo.
A época, virada do século vinte, início da expansão americana, da crescente indústria do petróleo – consta que o primeiro poço foi perfurado em 1859 –, e dos grandes volumes de dinheiro que fariam da América o que ela hoje é, rica e desonesta.
O diretor P.T.Jackson, que adaptou o roteiro do livro Oil! (1927), de Upton Sinclair, é sempre respeitável. Pela carreira sim, mas também por manter o peso que o filme exigia. Peso este que diz respeito à lei da gravidade, que lança as pessoas ao solo. Um filme sobre homens que rastejam, seja por uma imposição de regras ou por, em alguns casos, ser esta a sua verdadeira natureza.

Uma frase:






- Dave, minha mente está se esvaindo.



De: Hal 9000 (Computador dotado de avançada inteligência artificial)

Para: Dave (Keir Dullea).











2001 - Uma Odisseia no Espaço.

Filosofia: A Vontade, segundo Schopenhauer








No início de “Além da Linha Vermelha” (Thin Red Line, 1998), filme que retrata a Batalha de Guadalcanal (1943) entre americanos e japoneses, o personagem de Jim Caviezel, em uma de suas reflexões existenciais, questiona:








“haveria uma guerra no seio da natureza?”







Uma pergunta como esta, realizada mediante a mera observação, em Schopenhauer certamente encontraria a seguinte resposta: existe a Vontade, que é esta que não se cabe em si mesma, e não cessa. Esta Vontade é a mesma, em todas as formas, vivas ou não, desde organismos mais simples até em estruturas mais complexas, a saber, o próprio homem.
O que ela quer, a Vontade? Segundo Schopenhauer, essa volição, esse movimento, quer apenas deixar de ser, aniquilar-se. Por isto mesmo e também é que a filosofia do autor foi taxada de pessimista, pois que considera o inconformismo latente da mesma como algo que produz experiências de dor e sofrimento, que é capaz de conduzir o homem ao desespero na medida em que não é objetivada, saciada.
Mas há aspectos dessa filosofia que produzem efeito contrário, virtuoso, que é quando o homem opta por renunciar a esta “força” passando, portanto, a se aproximar de modos mais contemplativos de existência e, por conseguinte, anulando o sofrimento. Na arte, por exemplo, o sujeito (que é aquele que conhece sem ser conhecido) seria capaz de perceber o belo, a simetria, a harmonia, e isto lhe seria prazeroso exatamente pelo fato de o sujeito atuar como observador, enquanto o objeto (aquele que é conhecido sem conhecer) observado exibe, em sua natureza, o eterno conflito de forças que, naquele dado instante, não é o do observador. Quer seja em cenas trágicas ou em românticas – como aquelas existentes em nossas obras de arte, desde as mais clássicas até as mais modernas – quer seja em cenas desta natureza em que o homem é retratado em todas suas variações emocionais, nossa apreciação nasce exatamente quando o expectador se coloca, digamos, à parte do campo de batalha.
Mas dizer que a Vontade se manifesta em todos os seres animados não encerra todo o debate. Schopenhauer vai mais além e isto desde o primeiro capítulo de sua obra “O Mundo como Vontade e Representação”, sua obra magna. Nela, propõe que a Vontade determina tudo o que conhecemos: “o mundo é minha vontade”. Essa é uma afirmação inovadora e polêmica já que atribui ao conhecimento uma particularidade que antecede à razão e que, à parte desta, poderia mesmo ser chamada de irracional ou, melhor dizendo, intuitiva.
Isto, no contexto iluminista (século XVIII) em que Schopenhauer vivia, certamente o tornou impopular, valendo-lhe a indiferença dos acadêmicos, em oposição ao sucesso que obtinha junto ao público culto e artistas de sua época. Mas é importante salientar que toda a exaltação que se fazia em torno da racionalidade humana cai por terra em Schopenhauer, na medida em que o conhecimento advindo da intuição iguala o homem aos animais, sendo esta – a intuição – o ponto de partida de nossos desejos mais elementares, tais como a alimentação e reprodução, encontrando no homem formas mais articuladas de se manifestar.

A Vontade irá ditar regras de relacionamentos inclusive sociais, onde o que é bom é aquilo que a satisfaz, que à ela está diretamente submisso e a seu serviço. Mas um ponto inigualável que vejo em Schopenhauer, dado o relativo eurocentrismo de sua época – e talvez esboçado em Voltaire, na sua obra “Cândido”, onde o protagonista só encontra sua felicidade quando se dispõe a “cuidar de seu jardim” – é a aproximação com o Oriente, com a perspectiva hinduísta e budista, onde a supressão da Vontade fará do homem um ser livre, ao mesmo tempo em que o aproximará da santidade, na medida em que abre mão de seus quereres em prol do próximo. Sob esta ótica, o santo é aquele que melhor espelha o predomínio da intuição sobre a racionalidade.
Nietzsche, que combatia a supressão da vontade considerando-a com negação da vida, talvez não tenha entendido que, longe de promover uma geração de monges e artistas, Schopenhauer apenas realizava um estudo sistemático e filosófico, não atribuindo para si a responsabilidade profética de um Zaratrustra, por exemplo, mas a de um expressivo pensador, que a partir de Kant, concebeu uma obra que, de tão original, se colocava muito à frente de seu tempo.

domingo, 16 de maio de 2010

Homem de Ferro 2:



Muito barulho por nada




Pontos fortes:
- Mickey Rourke
- Os diálogos lacônicos e irônicos de Tony Stark diante dos Senadores.
- No início do filme, os vôos panorâmicos do Homem de Ferro pela cidade iluminada.
- As cenas realizadas em Mônaco.


Ponto extra-forte
- As cenas de combate da Viúva Negra (Scarlett Johanson).

Pontos extra-fracos:

- Podiam ter extraído uma interpretação melhor de Rourke. Bastava não deixá-lo esquecido em parte do filme. Tinha tudo para ser o novo Heath Ledger, se é que você me entende.

- O rival das indústrias Stark, o empresário Justin Hammer, oscila entre o caricato e ardiloso. A superficialidade, entretanto, é constante, como os vilões dos filmes do Steven Seagal. Insípido.

- Terem colocado Samuel L. Jackson como Nick Fury foi uma piada, desde o início. Interpretação afetadíssima e fora de propósito. Francamente.

- Todas as cenas de combate entre o Homem de Ferro são megalomaníacas, sobretudo as do final, com armamento pesado estourando em plena metrópole, e a população fugindo. Ao se preocupar com a coerência daquilo tudo, você não se envolve na ação.

Great Expectations (título em homenagem à Gwyneth Paltrow, se é que você me entende):
A formação dos Vingadores, que nos originais eram: Thor, Capitão América, Feiticeira Escarlate e – o meu preferido – o Visão, só para citar os principais. Mas, a julgar pela falta de veracidade que tem sido dada aos personagens, as adaptações dos quadrinhos são experiências não muito agradáveis de se ver no cinema. Mas até que o Homem de Ferro está bem acima de, por exemplo, Hulk, Quarteto Fantástico e Homem-Aranha. É pena, mas não é sempre que se faz um Batman-The Dark Knight.

Filmes de ontem e hoje: A Queda






A QUEDA



“As Últimas Horas de Hitler”


Abril de 1945. Decidido a ficar em Berlim, Adolf Hitler refugia-se em um bunker, uma espécie de abrigo subterrâneo, localizado sob a Chancelaria instalada no coração da cidade.
Inconformado com o avanço das tropas russas, o líder nazista traça insólitas estratégias de guerra nas linhas de um mapa, conduzindo, com suas trêmulas mãos, imaginários exércitos aos campos de batalha. O führer – líder –, com peculiares arroubos de grandeza, lutava inutilmente contra o fim que se anunciava através das sucessivas derrotas do exército nazista frente ao rolo compressor do Exército Vermelho. O Terceiro Reich foi uma designação nacionalista que evocava o Sacro Império Romano-Germânico fundado por Oton I em 962, e o Segundo Império, de Guilherme I em 1871, com a unificação alemã. E o sonho dele se perpetuar estava prestes a ruir juntamente com os planos de conquista mundial.
Esse é o cenário retratado em A Queda, filme realizado em 2004, baseado nos relatos do livro “Bis Zur Letzten Stunde” (Até a Hora Final: A Última Secretária de Hitler) de Traudl Junge e Melissa Müller, e em “Der Untergang”(No Bunker de Hitler: Os Últimos Dias do Terceiro Reich) de Joachim Fest. O filme provocou controversas opiniões. Isto porque o diretor Oliver Hirschbiegel optou não apenas por narrar as últimas horas do líder nazista, mas também por permitir que os fatos falassem por si mesmos. Assim, é notória a humanização de Hitler retratado não só nos inflamados discursos que o tornaram conhecido, mas, desta vez, também em sua intimidade, em seu tom confessional, em seu desgaste físico e mental.
Desse modo, o neurastênico ditador que chama seus oficiais de fracassados e covardes, que condena à morte os generais traidores que queriam fazer acordo com Eisenhower – o comandante das forças aliadas na Europa Ocidental –, que atribui ao povo alemão a culpa pela derrota e que abomina a nefasta influência dos judeus nas nações do Ocidente, esse ditador, pela primeira vez, contrasta com o frágil sujeito que alimenta sua cadela Blondi (a quem considera mais inteligente do que muitos humanos), com o homem que dispensa um dócil tratamento às mulheres e que se preocupa com o bem-estar de sua companheira e futura esposa Eva Braun, com o personagem esgotado que aspira à paz eterna quando der cabo de sua existência. Paz que só seria possível em vida se fossem vitoriosas suas apaixonadas concepções ideológicas e estéticas. Artes, Cultura, a marca de uma civilização que duraria milênios, era tudo de que o povo precisava, filosofa Hitler.
Seu aniversário, inclusive, se dá naqueles dias. Em 20 de Abril Hitler comemorou seu 56º. aniversário. Albert Speer, o ministro das armas, que com ele esteve naquela ocasião, impressionou-se com o estado do führer que, segundo relata, parecia-se com um decrépito ancião; até mesmo o uniforme, antes impecável, agora estava amarrotado, manchado pela comida que levava trêmulo à boca. Era o próprio retrato do regime que ruía.
É importante notar que as críticas em torno da obra dizem respeito, também, ao fato de o filme não exibir sequer um herói americano, não ter exaltado o exército aliado, ou atribuído ao povo judeu o monopólio do sofrimento mundial. Por outro lado, também A Queda não visou ancorar-se na figura de um líder traído e abandonado pelos demais. Antes, aposta no vigor da história, na força que ela contém em si mesma, o que lhe aproxima muito de um documentário exigindo, por isto, o máximo de dramaticidade dos personagens.
Essa latente tensão fica evidente através de Goebbels, ministro da propaganda, e de sua esposa Magda. Ali é que podemos vislumbrar o que Hitler e a ideologia nazista representaram à Alemanha. Era uma filosofia de vida. Nas palavras de Magda “nosso ideal morreu junto com a coisa mais linda, admirável e nobre que conhecemos. Não há futuro em um mundo sem o nacional-socialismo”. Parece não ter fim a cena em que ela põe em prática o trágico fim de sua família, ao som de cápsulas com veneno se rompendo entre os dentes, retratada de forma crua, resoluta. Também a cena do aposento de Hitler após seu suicídio, mostrando uma arma e uma poça de sangue, nos faz pensar no quanto tudo aquilo que está ocorrendo (trata-se de uma guerra de imensas proporções) tenha, curiosamente, sido idealizado por um simples mortal, cuja oratória provocava a admiração incondicional e o domínio da massa de insatisfeitos na Alemanha pós Tratado de Versalhes e Crise de 1929. Um simples mortal, aparentemente frágil, considerado uma das figuras mais vigorosas e emblemáticas do século XX.
A cena da fuga dos alemães na Berlim prestes a ser ocupada também há de ser lembrada. A destruição dos departamentos com suas documentações incendiadas, os amplos edifícios abandonados despejando pelas janelas sua parte de responsabilidade por tudo que ocorrera em 12 anos de Reich. A guerra acabaria em 07 de Maio com a rendição alemã, mas o Japão a estenderia até Agosto daquele ano.

Destaque para a atuação de Bruno Ganz, ator que ousadamente interpretou o papel do ditador, estudando minuciosamente aspectos de sua personalidade, trejeitos e o sotaque austríaco. Deste ator também é a voz que narra o famoso documentário “Arquitetura da Destruição”, obra realizada por Peter Cohen, em 1994.
A Queda concorreu ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, bateu recordes de bilheteria na Alemanha, na Inglaterra e fez sucesso nos Estados Unidos. Teve uma exibição tímida nos cinemas de Israel, pois o Centro de Direitos Humanos Judaico recomendou que o mesmo não fosse visto. É uma obra única, corajosa e que acrescenta novos elementos aos habituais filmes sobre a Segunda Guerra Mundial, explorando os bastidores, as mentalidades e os efeitos de uma ideologia nas entrelinhas do conflito.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Filosofia e Atualidade:





O que é coerência?

Recentemente, com a convocação da seleção de futebol para o evento que ocorrerá em junho, o treinador Dunga, em seu discurso à imprensa, proferiu diversas vezes o termo “coerência” que, segundo ele, serviu de critério na composição de sua lista de convocação dos atletas. Na repercussão da notícia, o termo ficou em evidência tanto na opinião dos comentaristas esportivos quanto na opinião da população.
No caso de Dunga, certamente ele se referia ao fato de que, trabalhando com um determinado grupo de jogadores, seria “incoerente” se, de repente, atendendo ao clamor popular, convocasse outros com quem ainda não havia tido oportunidade de treinar.
Entretanto, remontando à maneira dos gregos que, desde os primórdios da filosofia ocidental, se questionam através do seu “o que é”, tentamos lançar alguma luz sobre o termo questionando “o que é coerência?”.
De acordo com o dicionário Houaiss, coerência pode significar “ligação, nexo ou harmonia entre dois fatos ou duas idéias; relação harmônica, conexão”, significando ainda “uniformidade no proceder, critério que assegura a não-adoção de decisões baseadas em incertezas e cujas conseqüências são nitidamente indesejáveis”. Etimologicamente, coerência se origina do latim, cohaerentia,ae 'conexão, coesão', significando também ‘estar ligado, junto'.

Coerência evoca também certas implicações filosóficas, mais especificamente na disciplina Epistemologia – ou Teoria do Conhecimento –, que estuda, entre outras questões, os processos mentais, a relação entre experiência e razão na constituição do conhecimento, a impossibilidade do erro, a certeza da verdade, o ceticismo e até mesmo de que forma podemos afirmar que conhecemos ou não alguma coisa.
As teorias epistemológicas se dividem em dois pontos de vista:
Fundacionalismo: afirma que o conhecimento deve ser concebido como uma estrutura que se ergue a partir de fundamentos sólidos e seguros. A figura de um edifício ou pirâmide, construído sobre uma base consistente e irrevogável ilustra esta afirmativa, em que ao filósofo cabe identificar o que concede validade a este fundamento.
Coerentismo: um conjunto de afirmações que se reforçam mutuamente, sem que esteja fundamentado na certeza. A verdade de uma proposição reside na relação que ela estabelece com outros conhecimentos, consistentes, que a fortalecem. Para ilustrar essa teoria, poderíamos usar a imagem de um barco ou aeroplano, sustentado pela estabilidade das forças envolvidas, que mantém seu funcionamento.
Portanto, as decisões de Dunga apresentaram características coerentistas, ou seja, basearam-se em conhecimentos considerados válidos, estabelecidos bem antes da convocação, e que se ligaram a outros conhecimentos posteriores, que reforçaram os primeiros. Se tivesse uma atitude fundacionista, ele teria agido diferente, o que seria considerado ousado, porque parte de um pressuposto de novidade. Isto resultaria, por exemplo, na convocação de outros atletas a partir de uma afirmativa irrevogável, capaz de sustentar-se por si própria. No caso, a convocação de jogadores que despontaram recentemente, simplesmente porque são bons.
Assim, podemos ver que Dunga foi “coerente com sua coerência” e, quer se concorde ou não com suas decisões, ao menos no que diz respeito ao uso do termo, ele está totalmente certo. Se isto ganha campeonato, aí já é outra história.

Fonte: Dicionário Houaiss, Dicionário Oxford de Filosofia, Guia de Filosofia Zahar, J. Epistemologia Contemporânea, Edições 70, Greco, J. & Sosa, E. Compêndio de Epistemologia, Edições Loyola, Kim, J. & Sosa, E.

domingo, 9 de maio de 2010

o rio















e o que se movimenta em


e o que se movimenta em


e o que se movimenta em



em mim


dispara corações

pára os corações

díspares corações


e o que se movimenta em
e o que se movimenta em

expirações audíveis


e tudo mais o que eu não vejo





Identidade

A = A
?

A é igual a A ?


Se existem as ciências, é porque é possível conhecer. O homem tem uma conformação tal que lhe é dado conhecer a realidade com certa margem de segurança e objetividade, demonstrando o poder de libertar-se do particular e do contingente (casualidade) graças às sínteses que realiza.


Poderia a linguagem dar conta de toda realidade?

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Filosofia e Atualidade:














Distinção entre falácias e argumentos: como o Ministro da Fazenda nocauteou o diretor de Avatar


Nem todos os raciocínios que construímos, ou aos quais somos submetidos, são corretos e válidos. Muitos deles, em menor ou maior grau, apresentam erros formais que, em sob uma análise crítica, os desqualificam. Em filosofia, justamente estes erros e imprecisões são chamados de falácias. São erros de construção lógica que acabam por contaminar os raciocínios e, conseqüentemente, as argumentações.
As falácias são classificadas como formais e não-formais. As primeiras são aquelas em que os erros são identificados em sua própria estruturação, ou seja, na própria forma como expressamos, com imprecisões intencionais ou não, aquilo que queremos fazer parecer verdadeiro. Pode-se dizer que falácias formais apresentam erros “por dentro” de sua construção.

Ex 1: Todo homem é mortal [Premissa 1]
Sócrates é homem [Premissa 2]
Logo, Sócrates é mortal. [Conclusão]


Ex 2: Todo homem é mortal [Premissa 1]
Sócrates é mortal [Premissa 2]
Logo, Sócrates é homem. [Conclusão]

No exemplo 1, as premissas, inevitavelmente, conduzem a uma conclusão que, além de ser válida, é também verdadeira. Ou seja, as informações nos levam a uma conclusão indubitável.
Já no exemplo número 2, não podemos dizer o mesmo. Repare que este apresenta uma grave incorreção que, embora pouco perceptível, põe em questão seu valor de verdade. O fato de Sócrates ser mortal não determina que ele seja um homem. Sócrates poderia ser o nome, por exemplo, de meu animal de estimação, que é igualmente mortal. Esse é um caso típico de falácia formal. Ou seja, identificamos o erro de raciocínio na estrutura do próprio argumento, em seu interior. É um erro por “dentro”, por assim dizer.

Já no caso de falácias não-formais, os erros não são visíveis em sua forma, mas são perceptíveis através da realidade, do contexto que, de maneira indireta influencia nosso julgamento, agindo como elementos de convencimento. Podemos dizer que as falácias não-formais apresentam erros “por fora” de sua estrutura argumentativa.
Uma das falácias não-formais mais comuns são as chamadas falácias do “apelo à autoridade”. Ela ocorre quando a veracidade de uma conclusão é associada à reputação de quem a profere. No caso, uma reputação adquirida pela excelência apresentada por determinada pessoa em alguma outra área que não aquela sobre a qual a opinião se refere.
Exemplo:
― A dengue assola a cidade. Devo estar infectado, pois o doutor Adolfo afirmou que apresento os sintomas.
― O doutor Adolfo é seu médico?
― Não. Mas é um excelente advogado.

Atualmente, a falácia de autoridade é um recurso muito utilizado em marketing, que recorre à exposição da imagem de celebridades para atrair o consumidor. Assim, jogadores de futebol participam, por exemplo, de propaganda de automóveis. Evidentemente, sabemos que o personagem em questão não possui conhecimentos suficientes para dizer que o produto que está representando é superior ao do concorrente. Ou seja, o uso de sua imagem é um recurso falacioso para chancelar a qualidade do produto e, é claro, alavancar suas vendas.



Justificando o título da matéria, e concluindo nosso raciocínio sobre falácias formais e, sobretudo, falácias não-formais, recentemente tivemos um exemplo de falácia de autoridade envolvendo o diretor James Cameron (de Titanic e Avatar). Trata-se da polêmica construção da hidrelétrica de Belo Monte, no Pará. Cameron, que se opõe ao projeto, é simpatizante de causas ambientais e costuma usar o peso de seu nome para atrair a atenção da mídia para tais questões, como fez o Sting (ex-The Police), no final dos anos 80.
Mas acerca dos protestos de Cameron, que até se comprometeu a entregar uma carta escrita pelos índios locais ao presidente Obama, o Ministro da Fazenda Guido Mantegna, muito preciso em suas declarações, afirmou o seguinte: "O James Cameron é excelente cineasta, mas ele não é muito bom economista. É a mesma coisa que eu começar a dar palpite no cinema e sugerir que o 'Avatar' deveria ser feito com outra coloração. Acho que cada um deveria ficar na sua área de especialidade e não se meter onde não entende do assunto".

Vemos aqui o exemplo de uma refutação socrática que, notadamente, prevaleceu sobre uma atitude sofista. Como não é objeto de nosso pequeno estudo investigar as complexas questões que envolvem a construção da hidrelétrica, nos limitamos exclusivamente a fazer uma introdução ao conceito de falácias que, se tivesse maior pretensão, estaria forçando o argumento e incidindo em uma nova modalidade de erro: o da falácia do “apelo à piedade”, que consiste em justificar a fragilidade do raciocínio apelando para a misericórdia do interlocutor. Espero que não seja esse o caso.

Versículo da semana:

JUÍZES 13:18


- Por que você quer saber o meu nome? – perguntou o Anjo. – O meu nome é um mistério. [Bíblia: Nova Tradução na Linguagem de Hoje].

Ele respondeu: “Por que pergunta o meu nome? Meu nome está além do entendimento”. [Bíblia: Nova Versão Internacional].

E o anjo do Senhor lhe disse: Por que perguntas assim pelo meu nome, visto que é maravilhoso? [Bíblia: Almeida, Revista e Corrigida na grafia simplificada].

Respondeu-lhe o Anjo do Senhor e lhe disse: Por que perguntas assim pelo meu nome, que é maravilhoso? [Bíblia: Almeida, Revista e Atualizada].

Respondeu ele: Por que perguntas pelo meu nome? Ele é maravilhoso. [Almeida, Edição Contemporânea].

O anjo de Javé retrucou: “Por que você está querendo saber o meu nome? Ele é misterioso”.[Bíblia: Ivo Stonriolo, Euclides Martins Balancin].

No entanto, o anjo de Jeová disse-lhe: “ Por que é que me perguntarias assim pelo meu nome, quando ele é maravilhoso?”. [Tradução do Novo Mundo das Escrituras Sagradas].

Música: Chá de Boldo indica

















Going To a Town
(Rufus Wainwright)
Indo Para Uma cidade – TRECHO

I'm going to a town that has already been burned down
Estou indo para uma cidade que já foi incendiada
I'm going to a place that is already been disgraced
Estou indo para um lugar que já foi degradado
I'm gonna see some folks who have already been let down.
Vou ver alguns camaradas que já foram decepcionados
I'm so tired of America
Estou tão cansado dos Estados Unidos


Tell me do you really think you go to hell for having loved?
Diga-me Você acha mesmo que vai para o inferno por ter amado?
Tell me
Diga-me
and not for thinking every thing that you've done is good
E não por achar que tudo que você fez foi bom
(I really need to know)
Eu preciso mesmo saber

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Reflexão:


















“O que você chama de inferno, Rambo chama de lar”.



Diálogo do Coronel Trautman – Richard Crenna – com o Xerife que persegue Rambo, interpretado por Brian Dennehy em Rambo-Programado para Matar (1982).

Enquanto isso, no centro da cidade...














...em uma tarde de verão...

Ao M83













Eu não consigo parar

Eu não consigo parar de ...



Eu não consigo parar

Eu não consigo parar de ...



Eu não consigo parar

Eu não consigo parar de ...

sábado, 1 de maio de 2010

O Livro de Eli






O último livro inspirado, para um roteiro nem tanto.









Chega aos cinemas O Livro de Eli, com Denzel Washington como protagonista de uma história toda torta.
A obra tem ares de grande produção, mas nem mesmo esta pretensão soluciona os problemas que o filme apresenta. A fotografia, por exemplo, é pesada, escurecida ao extremo, e isso não é uma virtude. Fosse apenas para retratar o desolado cenário, então até que seria justificado – aliás, os primeiros segundos da aridez de Sangue Negro (2007), só para ilustrar, são mais impactantes do que toda a vã poeira espalhada ao longo deste. Mas o uso em excesso dos tons escurecidos em um filme como este, que se sustenta na ação, gera um certo incômodo, pois nas cenas de luta o espectador tem de ficar caçando os personagens nas sombras. Lembra até aquele duelo fajuto do Surfista Prateado com o Tocha Humana (Quarteto Fantástico 2). Além disso, o filme exibe uma série de clichês. Para você ter uma ideia: a semelhança múltipla com Mad Max (1979), porém muito piorada. Longas rodovias, bandidos em motocicletas, arruaceiros, comida enlatada e inclusive um sujeito, dono de um decadente armazém, que lembra em muito o Tom Waits da seqüência de 1982.
Mas sigamos na trilha do esfarrapado roteiro. Eli, personagem destemperado – o desgastado Washington pouco contribui para o papel –, possui uma Bíblia, livro de inspiração divina, e tudo fará para proteger este que é o último exemplar existente na face da Terra – detalhe: na versão King James. Segundo Eli, a voz de Deus ordenou para que ele seguisse na direção oeste. Em se tratando de fé, o motivo é bastante convincente já que célebres personagens da história extrabíblica foram recrutados em circunstâncias semelhantes. Lutero, Joana D’arc, Santo Agostinho e o Imperador Constantino (o último teve visões), são relatos contundentes de pessoas que mudaram o rumo de suas vidas – e da história – por meio de experiências com o divino, o sobrenatural..
Por outro lado, não muito convincente é o motivo que Carnegie, o líder de uma gangue – Gary Oldman que também poderia ser melhor aproveitado –, adota para justificar seu interesse pelo livro. Segundo ele, o livro irá ajudá-lo na dominação das massas. Mas ao contrário do que a Igreja fazia na Idade Média, quando submetia a população camponesa a uma vida miserável à custa da promessa de uma abençoada vida vindoura, Carnegie já exercia influência sobre os miseráveis de sua cidade maltrapilha através do domínio da água, moradia, comida. Esse tipo de dominação parece ser muito mais incisiva, pois afeta diretamente a sobrevivência da população que, além de não saber ler e escrever, sequer entende a natureza de uma oração. Afinal, orar para quem, quando o conceito de Deus é desconhecido? Fato esse que parece acentuar a bestialização da humanidade. O rude modo de vida (sobrevida?) adotado é pouco promissor para o que parece constituir uma façanha: a espiritualização de informes rochedos humanos. Trata-se de criaturas sobreviventes de uma suposta guerra nuclear de grandes proporções. Importa-lhes preencher o vazio do estômago.
Mas em um dado momento – ambigüidade do roteiro que se reflete no comentário deste – parece haver um resquício do conceito de divindade em certos personagens, que a ele não sabem dar nome. O que leva a pensar se, de modo intuitivo e natural, uma nova religião poderia se desenvolver, o que tornaria Deus, além de divino, necessário. Porém, se a resposta a esta dúvida for afirmativa, então pouco importa o livro de Eli, afinal, Carnegie poderia criar a sua própria religião a partir do tal princípio antropológico de necessidade do divino. E se precisasse ter um livro em mãos, bastaria mandar encapar O Código da Vinci – que no filme ele manda queimar (talvez o melhor momento da película) – e, com esta obra, poderia inventar sermões, criar sua religião e manipular o povo como quiser. Portanto, ter o último exemplar da Bíblia apenas faria diferença se ele fosse um devotado cristão. Mas não é este o caso. Por que alguém se importaria em adquirir um livro autêntico se não irá utilizá-lo respeitando seu conteúdo? Qualquer pedaço de papel pode se transformar em papiro sagrado para aquele que desconhece a escrita e a história por ela relatada. Na Idade Média, até mesmo pedaços de madeira, da suposta cruz do Calvário, eram santificados e vendidos como relíquias sagradas. Aliás, num país sincretista como o Brasil, o uso de amuletos ainda é muito contemporâneo.

Antes de concluir, esboço três erros no roteiro, sob o ponto de vista bíblico, evidenciando suas contradições internas, que anulam a mensagem do livro que o próprio roteiro sugere ser importante para a humanidade:

1 – Não haverá um pós-apocalipse. O apocalipse ocorrerá uma vez. E será suficiente. A ideia de um recomeçar civilizatório puramente humano é, em suma, puramente humano. E no Apocalipse não serão os humanos a decidir isto ou aquilo. Ou então estamos falando de algum evento em menor escala que irá anteceder o Apocalipse. Mas isso não é nenhuma novidade, mas apenas o início das dores, retratado nos evangelhos.

2 – A Bíblia não é mediadora da salvação da humanidade. Ela mesmo afirma isso, quando atribui este papel a Cristo. A Bíblia registra a vontade de Cristo. Mas ela não é o Cristo. Além do mais, mesmo se todas as Bíblias fossem queimadas – o que é muito estranho já que é um dos livros mais lidos do mundo – , isso não mudaria o fato de que Deus continuará existindo e declarando sua glória de muitas outras maneiras (Salmo 19 e Romanos1-20), como de fato o fez ao “conversar” com o Eli. Mesmo porque a Bíblia anuncia uma redenção que se cumprirá em Cristo.

3 – O fato de o protagonista ter uma Bíblia não lhe dá direito de sair por aí matando as pessoas, mesmo que criminosas. Na verdade, a Bíblia foi escrita para pessoas como aquelas que Eli matou: bêbados, assassinos, ladrões, criminosos. Pessoas pecadoras que, como eu e você, necessitam do perdão divino. Pessoas como o protagonista, perdidas. Portanto, Eli não entendeu a mensagem bíblica. Preocupado com sua missão, não pensou duas vezes antes de cortar ao meio quem lhe atravessasse o caminho, embora tenha dito que aprendeu – após 30 anos vagando e lendo o livro todos os dias – a se importar com os outros. O correto seria que, ciente do conteúdo dos textos em que medita, Eli evangelizasse as pessoas que encontrasse pelo caminho, no mesmo oeste que lhe fora destinado.

Concluindo:

Imprimir a Bíblia não fará diferença se não houver público para lê-la. Entretanto, se no filme já havia um lugar onde tantos outros livros já estavam sendo preservados, pode-se deduzir que o letramento das massas havia sido iniciado. Isso significa que, após algumas décadas, as pessoas voltarão a ler e a escrever. Enfim, após gerações de cultura oral, teríamos a cultura escrita novamente, e a Bíblia será novamente um livro adotado tanto em igrejas quanto em universidades e estantes. Como já é hoje! Ou seja, não houve nada de redentor na missão de Eli ! Ponto final.

Portanto, é apenas entretenimento, porém de má qualidade. O que é uma pena, já que a ideia original era promissora e, em mãos mais hábeis, poderia se tornar efetivamente relevante.
Mas havia me esquecido. Assim como no filme, o gado da cultura oral e visual respira o mesmo ar empoeirado que os sobreviventes daquele pseudo-apocalipse. Olhos e ouvidos são os estômagos de agora, e estão famintos, sedentos. A coerência da história não importa, e sim as imagens e sons. Nesse caso, o banquete é garantido.


assim como à proa do barco em pleno inverno no oceano índico




















tremer de espumas

o velcro da chuva

véu índigo

tarde tão distante como a de invernos passados

incertos intercalados corridos ancestrais artesanais

figuras à mesma mesa do tempo

uma colcha de retalhos com enfeite em uma das bordas

o pôr do sol avermelhado nesse céu anil, véu índigo

tremer com espumas

Mulheres de ontem e de hoje


Forugh Farrokhzad
(1935-1967)


Forugh Farrokhzad é uma poetisa iraniana, cuja meteórica produção poética se deu entre 1955 e 1965, resultando em 5 livros, infelizmente não disponíveis em nosso idioma.




Basicamente, seus textos tratam da submissão, da condição feminina, da impossibilidade de se expressar – tanto no aspecto social e profissional, quanto no afetivo – em um país dominado por homens e à beira de um colapso político-religioso, que viria a ocorrer afinal em 1979, com a revolução islâmica que colocou não só os aiatolás no poder, mas também o véu nas mulheres, banindo de vez a continuidade daquilo que poderíamos chamar de um esboço de democracia no até então “moderno” Irã.
Forugh é de uma importância ímpar, uma voz singular que se torna ainda mais evidente quando, atualmente, tentamos obter material deste gênero (poesia) de escritoras daquela região do globo. Algo muito, muito escasso...

Mais informações sobre mulheres iranianas :
Persépolis (Quadrinhos, Cia das Letras)
Lendo Lolita no Teerã (Romance, Ed. A Girafa)
O Voto é Secreto (DVD: Drama)


O meu coração está carregado, carregado.

Vou até à varanda, os meus dedos afagam
a pele tensa da noite.
As luzes da comunicação apagaram-se,
as luzes da comunicação apagaram-se.
Ninguém me levará ao sol

ou me apresentará o carnaval dos pardais.

Relembra o vôo: o pássaro em si é mortal.



Versão de Vasco Gato



On Earth

I never wanted to be a star in the sky's mirage,

a select soul or an unspeaking friend of angels.

I never left the earth or took up with stars.

I stand on the earth and my body like a plant


absorbs wind, sun, and water to stay alive.



Identidade


O ser humano:

É o único ser que ri.
o único que pensa acerca de si mesmo.
o único que possui inquietação moral.
o único que dissimula seus sentimentos:
diz que ama quando odeia, e diz que odeia, quando ama.
o único que possui necessidades estéticas.
o único que nega a si mesmo.
o único que faz orações...

Uma frase:


“Essa frase é falsa”

Pergunta: Poderia esta frase, ser verdadeira?

Se a frase estiver expressando a verdade, então ela é auto refutante. É nula.

Se a frase estiver expressando a mentira, então ela está sendo verdadeira. Novamente é auto refutante. É nula.

Jardim aos Tuaregs
















Sentiu ao acaso que a tarde na cidade nada oferece. Um clube, uma estrada, uma cidade nova, seja lá que nome dá a teus remédios. Mas os monumentos só lhe faziam pensar em tragédias na vida de alguém que não conhecera nem em sonhos. Embora os nomes soassem confortáveis em ouvidos a eles habituados. Ah, perdão. A cidade. Ela nos torna previsíveis.
A fumaça triste do sábado revolvia pequenas folhas no chão. As coisas maiores de cada dia, entretanto, permaneciam como que intocadas, próprias para uma violenta tempestade. Quietas até então.
Não temos mais dinheiro, o que pode acontecer conosco, aqui nesta parte do Saara, amigo tuareg? Vem esta sensação repentina de o mundo precisar de uma braçada enorme, que o tirasse do profundo oceano do tempo que o arrasta para bem longe longe longe.
Mas trago apenas uma coceira nas mãos, esperando por representações gráficas de meus sentimentos. Eu nunca estive tão machucado e, ao mesmo tempo, cheio de tão pouca dor.
Tenho apenas uma coceira nas mãos que equivale ao tempo que não pode ser medido, após tê-lo intensamente consumido. Tenho o traço no invisível, letras abstraídas de movimentos sutis, construídos como da solidez de um castelo de imagens pulsantes, antológicas, que quer dizer eternas, que quer dizer colher flores, que quer dizer tornar as coisas especiais, guardando-as.
Para onde você olha quando está só? Que nome tem os tuaregs de agora?


Para onde você olha quando está só? Para baixo, pra cima, pra frente...ou para tudo o que mais for possível restar. Que nome se dá à lentidão do reclinar da cabeça quando, alta, a relva se enlaça à açoite brisa? Reverência? Alcançava-me à cintura as ondas de matagais, eu até a borda.
Ouves o sino, os foguetes, o rançoso motor do ônibus, fumaça demorando a esvaecer, tecido escuro na Cabo Benedito Alves unindo-se à nuvem abatida das fogueiras à beira do Rio Verde, as crianças no calor, no trepidar da rua árida, das rochas desbotadas, dos paralelepípedos, meio-fios desfigurados, ilusão de ótica, mananciais no deserto tremulando, vida árida. O que pode acontecer agora, caríssimo tuareg? Crianças de rubras faces, gotículas de suor brotando de narizes sutilmente arredondados, recado indígena na construção do corpo e tempo, microscópicas penugens castanho-claras, teclas de piano no prólogo das sinfonias, estão começando agora e de nada fazem idéia. Desengonçados, também nós; nas trincheiras temos as mãos de meninos tímidos empunhando esfomeadas foices rudes. O rançoso motor da história.
De quase nada sabem, rostos narrando acontecimentos sobre si mesmos, suas origens estampadas como numa camiseta branca de estudante. Em frágeis troncos desnudos, brincam de adivinhar os nomes de candidatos às vésperas das urnas, papéis com fotos e argumentos, no ar. Como em cirandas, confundem os cargos e depois recomeçam, corrigindo onde antes haviam errado. Ruas esburacadas esguichando água e uma placa amarela dizendo algo sobre obras inacabadas.
Você olha então para cima, e o nome da claridade agora é lágrima que arde. São três horas da tarde e não existe sol visível hoje. Talvez chova, porque nos dias anteriores choveu e suas roupas no varal foram encontradas nas árvores do jardim vizinho, entre cercas e animais de penas, assustados e tingidos pela escorregadia terra vermelha.
Você então olha para cima, e talvez chova porque nos outros dias assim o foi. O horizonte era uma mistura de poeira e fumaça e fuligem e sopro contido. O vento demora, e quando chega, suspira esgotado. Trégua ao tempo. Estender o braço para fora de tudo o que nos delimita. O corpo, ele é a fronteira, nada mais do que para além do qual já não se pode mais ir. O braço captura o abraço e só assim se finda o vácuo, abrindo as mãos invisíveis como o desabrochar da flor. O círculo não comporta retorno. É um só, completo. E temos em nós essa coisa circular que gira para fora teimosamente. Como dar uma braçada muito grande, que levasse anos a fio, ou o tempo de uma vida inteira. Uma pequena vida inteira sendo por enquanto uma pequena narrativa de uma tarde.
Você então olha para cima e talvez chova porque tem sido assim durante todo o mês, e a gente fecha os olhos e fica ouvindo o barulho. Poderíamos tapar os ouvidos, abrir os olhos, e seria bonito do mesmo modo. O que existe, existe e nem sempre se pode ver. Vamos ficar esperando tudo recomeçar, pela milésima vez consecutiva. Acordados e de pé, saboreando e sabendo de tudo. Com a sabedoria dos anciões.
Eu não consigo parar de pensar. Eis o dia. Eis o tempo. Ei-la, ó vida, tudo intacto como no primeiro dia de todos os tempos. O corpo, mais sólido que a matéria. E o espírito, pairando sobre as águas.

“...e também não havia homem para lavrar o solo. Mas uma neblina subia da terra, e regava toda a superfície ...”(Gênesis 2.5-6).