Sentiu ao acaso que a tarde na cidade nada oferece. Um clube, uma estrada, uma cidade nova, seja lá que nome dá a teus remédios. Mas os monumentos só lhe faziam pensar em tragédias na vida de alguém que não conhecera nem em sonhos. Embora os nomes soassem confortáveis em ouvidos a eles habituados. Ah, perdão. A cidade. Ela nos torna previsíveis.
A fumaça triste do sábado revolvia pequenas folhas no chão. As coisas maiores de cada dia, entretanto, permaneciam como que intocadas, próprias para uma violenta tempestade. Quietas até então.
Não temos mais dinheiro, o que pode acontecer conosco, aqui nesta parte do Saara, amigo tuareg? Vem esta sensação repentina de o mundo precisar de uma braçada enorme, que o tirasse do profundo oceano do tempo que o arrasta para bem longe longe longe.
Mas trago apenas uma coceira nas mãos, esperando por representações gráficas de meus sentimentos. Eu nunca estive tão machucado e, ao mesmo tempo, cheio de tão pouca dor.
Tenho apenas uma coceira nas mãos que equivale ao tempo que não pode ser medido, após tê-lo intensamente consumido. Tenho o traço no invisível, letras abstraídas de movimentos sutis, construídos como da solidez de um castelo de imagens pulsantes, antológicas, que quer dizer eternas, que quer dizer colher flores, que quer dizer tornar as coisas especiais, guardando-as.
Para onde você olha quando está só? Que nome tem os tuaregs de agora?
Para onde você olha quando está só? Para baixo, pra cima, pra frente...ou para tudo o que mais for possível restar. Que nome se dá à lentidão do reclinar da cabeça quando, alta, a relva se enlaça à açoite brisa? Reverência? Alcançava-me à cintura as ondas de matagais, eu até a borda.
Ouves o sino, os foguetes, o rançoso motor do ônibus, fumaça demorando a esvaecer, tecido escuro na Cabo Benedito Alves unindo-se à nuvem abatida das fogueiras à beira do Rio Verde, as crianças no calor, no trepidar da rua árida, das rochas desbotadas, dos paralelepípedos, meio-fios desfigurados, ilusão de ótica, mananciais no deserto tremulando, vida árida. O que pode acontecer agora, caríssimo tuareg? Crianças de rubras faces, gotículas de suor brotando de narizes sutilmente arredondados, recado indígena na construção do corpo e tempo, microscópicas penugens castanho-claras, teclas de piano no prólogo das sinfonias, estão começando agora e de nada fazem idéia. Desengonçados, também nós; nas trincheiras temos as mãos de meninos tímidos empunhando esfomeadas foices rudes. O rançoso motor da história.
De quase nada sabem, rostos narrando acontecimentos sobre si mesmos, suas origens estampadas como numa camiseta branca de estudante. Em frágeis troncos desnudos, brincam de adivinhar os nomes de candidatos às vésperas das urnas, papéis com fotos e argumentos, no ar. Como em cirandas, confundem os cargos e depois recomeçam, corrigindo onde antes haviam errado. Ruas esburacadas esguichando água e uma placa amarela dizendo algo sobre obras inacabadas.
Você olha então para cima, e o nome da claridade agora é lágrima que arde. São três horas da tarde e não existe sol visível hoje. Talvez chova, porque nos dias anteriores choveu e suas roupas no varal foram encontradas nas árvores do jardim vizinho, entre cercas e animais de penas, assustados e tingidos pela escorregadia terra vermelha.
Você então olha para cima, e talvez chova porque nos outros dias assim o foi. O horizonte era uma mistura de poeira e fumaça e fuligem e sopro contido. O vento demora, e quando chega, suspira esgotado. Trégua ao tempo. Estender o braço para fora de tudo o que nos delimita. O corpo, ele é a fronteira, nada mais do que para além do qual já não se pode mais ir. O braço captura o abraço e só assim se finda o vácuo, abrindo as mãos invisíveis como o desabrochar da flor. O círculo não comporta retorno. É um só, completo. E temos em nós essa coisa circular que gira para fora teimosamente. Como dar uma braçada muito grande, que levasse anos a fio, ou o tempo de uma vida inteira. Uma pequena vida inteira sendo por enquanto uma pequena narrativa de uma tarde.
Você então olha para cima e talvez chova porque tem sido assim durante todo o mês, e a gente fecha os olhos e fica ouvindo o barulho. Poderíamos tapar os ouvidos, abrir os olhos, e seria bonito do mesmo modo. O que existe, existe e nem sempre se pode ver. Vamos ficar esperando tudo recomeçar, pela milésima vez consecutiva. Acordados e de pé, saboreando e sabendo de tudo. Com a sabedoria dos anciões.
Eu não consigo parar de pensar. Eis o dia. Eis o tempo. Ei-la, ó vida, tudo intacto como no primeiro dia de todos os tempos. O corpo, mais sólido que a matéria. E o espírito, pairando sobre as águas.
“...e também não havia homem para lavrar o solo. Mas uma neblina subia da terra, e regava toda a superfície ...”(Gênesis 2.5-6).
A fumaça triste do sábado revolvia pequenas folhas no chão. As coisas maiores de cada dia, entretanto, permaneciam como que intocadas, próprias para uma violenta tempestade. Quietas até então.
Não temos mais dinheiro, o que pode acontecer conosco, aqui nesta parte do Saara, amigo tuareg? Vem esta sensação repentina de o mundo precisar de uma braçada enorme, que o tirasse do profundo oceano do tempo que o arrasta para bem longe longe longe.
Mas trago apenas uma coceira nas mãos, esperando por representações gráficas de meus sentimentos. Eu nunca estive tão machucado e, ao mesmo tempo, cheio de tão pouca dor.
Tenho apenas uma coceira nas mãos que equivale ao tempo que não pode ser medido, após tê-lo intensamente consumido. Tenho o traço no invisível, letras abstraídas de movimentos sutis, construídos como da solidez de um castelo de imagens pulsantes, antológicas, que quer dizer eternas, que quer dizer colher flores, que quer dizer tornar as coisas especiais, guardando-as.
Para onde você olha quando está só? Que nome tem os tuaregs de agora?
Para onde você olha quando está só? Para baixo, pra cima, pra frente...ou para tudo o que mais for possível restar. Que nome se dá à lentidão do reclinar da cabeça quando, alta, a relva se enlaça à açoite brisa? Reverência? Alcançava-me à cintura as ondas de matagais, eu até a borda.
Ouves o sino, os foguetes, o rançoso motor do ônibus, fumaça demorando a esvaecer, tecido escuro na Cabo Benedito Alves unindo-se à nuvem abatida das fogueiras à beira do Rio Verde, as crianças no calor, no trepidar da rua árida, das rochas desbotadas, dos paralelepípedos, meio-fios desfigurados, ilusão de ótica, mananciais no deserto tremulando, vida árida. O que pode acontecer agora, caríssimo tuareg? Crianças de rubras faces, gotículas de suor brotando de narizes sutilmente arredondados, recado indígena na construção do corpo e tempo, microscópicas penugens castanho-claras, teclas de piano no prólogo das sinfonias, estão começando agora e de nada fazem idéia. Desengonçados, também nós; nas trincheiras temos as mãos de meninos tímidos empunhando esfomeadas foices rudes. O rançoso motor da história.
De quase nada sabem, rostos narrando acontecimentos sobre si mesmos, suas origens estampadas como numa camiseta branca de estudante. Em frágeis troncos desnudos, brincam de adivinhar os nomes de candidatos às vésperas das urnas, papéis com fotos e argumentos, no ar. Como em cirandas, confundem os cargos e depois recomeçam, corrigindo onde antes haviam errado. Ruas esburacadas esguichando água e uma placa amarela dizendo algo sobre obras inacabadas.
Você olha então para cima, e o nome da claridade agora é lágrima que arde. São três horas da tarde e não existe sol visível hoje. Talvez chova, porque nos dias anteriores choveu e suas roupas no varal foram encontradas nas árvores do jardim vizinho, entre cercas e animais de penas, assustados e tingidos pela escorregadia terra vermelha.
Você então olha para cima, e talvez chova porque nos outros dias assim o foi. O horizonte era uma mistura de poeira e fumaça e fuligem e sopro contido. O vento demora, e quando chega, suspira esgotado. Trégua ao tempo. Estender o braço para fora de tudo o que nos delimita. O corpo, ele é a fronteira, nada mais do que para além do qual já não se pode mais ir. O braço captura o abraço e só assim se finda o vácuo, abrindo as mãos invisíveis como o desabrochar da flor. O círculo não comporta retorno. É um só, completo. E temos em nós essa coisa circular que gira para fora teimosamente. Como dar uma braçada muito grande, que levasse anos a fio, ou o tempo de uma vida inteira. Uma pequena vida inteira sendo por enquanto uma pequena narrativa de uma tarde.
Você então olha para cima e talvez chova porque tem sido assim durante todo o mês, e a gente fecha os olhos e fica ouvindo o barulho. Poderíamos tapar os ouvidos, abrir os olhos, e seria bonito do mesmo modo. O que existe, existe e nem sempre se pode ver. Vamos ficar esperando tudo recomeçar, pela milésima vez consecutiva. Acordados e de pé, saboreando e sabendo de tudo. Com a sabedoria dos anciões.
Eu não consigo parar de pensar. Eis o dia. Eis o tempo. Ei-la, ó vida, tudo intacto como no primeiro dia de todos os tempos. O corpo, mais sólido que a matéria. E o espírito, pairando sobre as águas.
“...e também não havia homem para lavrar o solo. Mas uma neblina subia da terra, e regava toda a superfície ...”(Gênesis 2.5-6).
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