quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Descartes-Será que Deus existe?



Descartes e as provas da existência de Deus



1. INTRODUÇÃO

René Descartes (1596-1650), filósofo francês, viveu em uma época em que o mundo europeu era marcado por transformações religiosas, científicas, sociais e políticas. Estas transformações traziam à tona um espírito de descrença, de ceticismo. Afinal, as verdades que, até então, eram tidas como infalíveis passavam a ser objeto de contestação, de dúvida, pois não mostravam fruto de um conhecimento genuíno, mas da opinião.
Nesse contexto, tornou-se necessário desenvolver um método seguro, que fosse racional, que pudesse conduzir ao conhecimento e evitar enganos. Para tal empreendimento, Descartes abandona as crenças que eram dogmaticamente aceitas, submetendo-as não mais ao peso da tradição, mas a critérios próprios da razão.
A dúvida é, portanto, estrategicamente necessária, pois ela irá nos conduzir ao “Cogito ergo sum”, que significa “Penso, logo existo (sou)”. Entretanto, esta verdade ainda é limitada, pois se restringe ao campo do pensamento. O desafio seguinte de Descartes é fazer uma ponte entre teoria, mundo interior, e prática, mundo exterior. Para tal feito, recorre ao conceito de Deus.



 
2. DESENVOLVIMENTO
Para Descartes, a verdade obtida por meio do Cogito, seria uma verdade independente do mundo exterior. Assim, tanto fazia se as coisas que percebia pelos sentidos eram reais ou ilusórias, concebidas por um gênio maligno (malin génie), que o quisesse enganar. Ainda que estivesse errando o tempo todo, devido à suposta ação deste gênio, Descartes estaria pensando, e esta verdade indubitável, fundamental, seria seu ponto de partida.
Entretanto, era preciso algo mais para validar o conhecimento para além da experiência individual, do contrário desembocaríamos no solipsismo, no isolamento do eu em relação ao mundo exterior. O objetivo de Descartes não é encerrar a certeza do conhecimento em um cogito solipsista, mas fundamentar a possibilidade do conhecimento científico, construir métodos seguros para uma ciência mais confiável que aquela que lhe antecedeu. Para que Descartes supere esse idealismo, fundamentado na certeza do pensamento puro, necessita estabelecer uma ponte entre o pensamento subjetivo e a realidade objetiva.
Com este propósito, na Terceira Meditação, Descartes examina a única realidade que até então lhe é permitida: a do pensamento. Conclui que a mente é composta de ideias, as quais classifica em três tipos: as inatas, as adventícias (empíricas) e as ideias de imaginação, estas últimas formadas a partir de nossas experiências. Na Quarta Meditação, prossegue Descartes, estabelece que as ideias que concebemos comoclaras e distintas” são verdadeiras na medida em que sua representação corresponda ao objeto, mas o que verdadeiramente dará garantias à teoria de correspondência entre o pensado interior e o real exterior é a ideia de Deus, que agora Descartes passa a admitir em sua filosofia.
Descartes retoma o argumento ontológico de Anselmo (1033-1109), em que a ideia de perfeição divina implica que esse ser deva existir pois aquilo que é perfeito deve incluir a existência para se consolidar como ser perfeito. Descartes aplica este argumento a seu pensamento porque, conclui ele, sendo imperfeito, a ideia de perfeição não poderia partir de si, deveria vir de algum outro lugar que não de sua própria mente, visto que não encontrava correlatos dessa perfeição no mundo exterior. Trata-se, segundo Descartes, de uma ideia inata – e daí a importância das categorias de ideias na Terceira Meditação. Esse conceito, inevitavelmente, por meio de uma cadeia de razões, irá conduzir o filósofo a argumentar que Deus é o criador do mundo externo, tendo o poder (Quinta e Sexta Meditações) de conservar essa criação.
O argumento ontológico, em sua versão medieval, concebido por Santo Anselmo parte do conceito de Deus como aqueleser maior do que o qual nada pode ser pensado”. Para que um ser seja perfeito, deve existir não em pensamento mas também na realidade pois um ser pode ser perfeito se possuir todos os atributos, entre eles, o da própria existênciapois existir é mais completo que não existir. Logo, se é possível a um ser finito e imperfeito pensar em um ser assim, superior e perfeito, este ser existe. Conforme relata em seu ProslogionSenhor meu Deus, que nem podes sequer ser pensado como se não existisses”. Porém, se para Anselmo, a prova da existência de Deus está a serviço da , para Descartes, ela é a condição para garantir a possibilidade do conhecimento racional.
A confirmação da existência de Deus, a partir do cogito, afirma a existência do mundo exterior pois que, sendo-nos possível apreendê-lo pelos sentidos, não seria possível que um Deus, em sua perfeição, estivesse o tempo todo nos enganando com ilusões e impressões equivocadas a respeito de tudo aquilo que percebemos. Os erros, tal qual nossos sentidos corroboram ocorrer, partem de nossa limitada condição de percepção. Descartes evita, neste ponto, aliar seu conceito de imperfeição à doutrina do pecado, mas reafirma que o conhecimento do homem é imperfeito dado o que suas condições de constante descobertas e aprendizados lhe confirmam que aquilo que julga saber está em constante aprimoramento, como de fato seu próprio método, que visa corrigir a antiga maneira de se produzir ciência termina por se consolidar como nova forma de aproximação da verdade. A existência de Deus, em Descartes, se constituirá como o caminhoaté o conhecimento das coisas” (Quarta Meditação).
            Descartes reforça que a consciência de sua imperfeição, advinda do fato de que suas dúvidas revelam suas limitações, apontava para uma existência perfeita, dotada de toda precisão e certeza, e  que tal conceito de perfeição, infiltrado em um ser imperfeito, era a garantia da existência de um Ser perfeito, que seria Deus. Esse mesmo Deus, sendo bondoso (o bon Dieu, em oposição ao malin génie), não permitiria que tudo o que percebemos por meio de nossos sentidos fossem ilusões. Assim, em contraposição às possíveis ações enganosas de um gênio maligno que brincasse com nossos sentidos, Descartes responde com a ação perfeita de um Deus bondoso, que anula o engano. De modo que podemos confiar em nossos raciocínios como fundamento para a busca de verdades, e que as coisas concebidas como claras e evidentes são efetivamente verdadeiras.
  

3. CONCLUSÃO
Se em um primeiro momento Descartes faz uso da dúvida metódica, que conduz o ceticismo ao extremo e com ela desconstrói o mundo, a realidade, em seguida ele demonstra, a partir do cogito e da certeza da existência de um Ser perfeitoDeus –, que isso nos garante a possibilidade de conhecer.
O Deus cartesiano é a garantia da objetividade do conhecimento científico; enquanto bon Dieu, projeta o otimismo racionalista. O bon Dieu equivale, portanto, a Razão que Descartes reverencia e que constituirá, a partir do humanismo moderno, o cerne dos ideais libertadores do Iluminismo. E é, portanto, este mesmo Deus que possibilitará demonstrar a existência do mundo físico o qual, partindo de nossas duvidosas impressões empíricas, deverá ser comprovada gradualmente, em etapas. Na sexta das Meditações, Descartes demonstra que a existência do mundo exterior é possível para em seguida defender que é provável para que, finalmente, conclua que é mais que provável, mas é também certa e indubitável. Apoia-se na ideia de Deus, que é a garantia da objetividade percebida no mundo. Deus (res infinita), sustenta a certeza entre o pensamento (res cogitans) e o mundo físico (res extensa). Assim, é Deus, ser infinito, o intermediário das duas formas de manifestação da individualidade finita: o mental e o corpóreo, substâncias distintas mas que coexistem.


4. BIBLIOGRAFIA

ALMEIDA, Aires et al. A arte de pensar – 10º. Ano, Vol.2. Lisboa: Didáctica Editora, 2008.

ALMEIDA, Aires; Murcho, Desidério (orgs). Textos e Problemas de Filosofia. Lisboa: Plátano Editora S.A, 2006.

BUNNIN, Nicholas; Tsui-James, E.P (orgs). Compêndio de Filosofia. São Paulo: Edições Loyola, 2010.

CHAUÍ, Marilena. Filosofia moderna. In: Primeira filosofia. São Paulo: Brasiliense, 1996.

CORTELLA, Mário Sérgio. Descartes: paixão pela razão. São Paulo: FTD, 1988.

DESCARTES, René. São Paulo: Abril Cultural. Os Pensadores (Coleção), 1999.

KENNY, Anthony. Uma nova história da filosofia ocidental (vol. III): o despertar da filosofia moderna. São Paulo: Edições Loyola, 2009.

MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 2000.

REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia,Vol.II - do Humanismo a Kant. São Paulo: Paulus, 2007.

RUSSELL, Bertrand. História do Pensamento Ocidental: a aventura das ideias, dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.

WARBURTON, Nigel. O básico da filosofia. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008.

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

O que é uma pessoa?


Afinal, como podemos definir o que é uma pessoa?

John Locke define uma pessoa como "um ser inteligente e pensante dotado de razão e reflexão e que pode considerar-se a si mesmo como aquilo que é, a mesma coisa pensante, em diferentes momentos e lugares."
Poderemos pensar: “como assim, em diferentes momentos e lugares? Quem colocaria em discussão uma coisa dessas?”. Theodore Siders, em  Riddles of Existence, sugere o caso de um criminoso que, em sua defesa, alega o seguinte:
“Admito que o assassino é destro, como eu, que tem as mesmas impressões digitais que as minhas e que não usa barba nem bigode, como eu. Até se parece exatamente comigo nas fotografias da câmara de vigilância apresentadas pela defesa. Não, não tenho um irmão gêmeo. Na verdade, admito lembrar-me de ter cometido o homicídio! Mas eu e o homicida não somos a mesma pessoa, uma vez que sofri mudanças. A banda de rock preferida dessa pessoa eram os Led Zeppelin; agora prefiro Todd Rundgren. Essa pessoa tinha apêndice, mas eu não; o meu foi removido na semana passada. Essa pessoa tinha vinte e cinco anos de idade; eu tenho trinta. Eu e esse assassino de há cinco anos não somos a mesma pessoa. Portanto, não podem punir-me, pois ninguém é culpado de um crime cometido por outra pessoa”(Londres: Clarendon Press, 2005-Tradução de Vitor Guerreiro).
Como nos informa Siders “os filósofos refletem também na identidade ao longo do tempo de objetos [...] o que faz com que uma árvore, bicicleta ou nação sejam a mesma coisa em momentos distintos?”. Algumas respostas giram em torno da existência da alma, da continuidade temporal ou continuidade psicológica (uma pessoa no passado é numericamente idêntica à pessoa no futuro, desde que esta tenha a memória da pessoa no passado, as suas características individuais, e por aí em diante, independente se a pessoa no passado e a pessoa no futuro sejam ou não espaço-temporalmente contínuas entre si). E há ainda filósofos contemporâneos, como Derek Parfit, que questionam por qual motivo a identidade é algo importante.
Em Ética Prática, Peter Singer, menciona uma outra definição do termo "humano", proposta por Joseph Fletcher, teólogo protestante e autor prolífico de escritos sobre temas éticos. Abaixo, os "indicadores de humanidade":
  • Autoconsciência
  • Autodomínio
  • Sentido do futuro
  • Sentido do passado
  • Capacidade de se relacionar com outros
  • Preocupação pelos outros
  • Comunicação
  • Curiosidade
Assim, quando dizemos que alguém é “muito humano”, não estamos nos referindo à espécie Homo Sapiens, mas ao nível de correspondência que este alguém possui em relação aos critérios acima.
Prossegue Peter Singer “os dois sentidos de ser humano não são coincidentes. O embrião, o feto subsequente, a criança gravemente deficiente mental e até mesmo o recém-nascido, todos são indiscutivelmente membros da espécie Homo sapiens, mas nenhum deles é autoconsciente nem tem um sentido do futuro ou a capacidade de se relacionar com os outros. Logo, a escolha entre os dois sentidos pode ter implicações importantes para a forma como respondemos a perguntas como "será que o feto é um ser humano?"”.
Singer conclui “A definição de Locke se aproxima da de Fletcher no quesito “racionalidade e autoconsciência”. É muito possível que Fletcher concordasse que estas duas características são centrais e que as restantes decorrem mais ou menos delas”.


Ética Prática, de Peter Singer (Martins Fontes, 2009 – Cap.4, págs. 96-99).