segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Todos os dias são letivos


[Crônica tricordiana]


As tardes de sábado, novamente, estas tardes. Os transeuntes não atrapalham ninguém. Vão às compras, às lojas. E saem felizes pelo dia azul afora. É inverno. Meu Deus, penso. A cidade está indo embora. E as pessoas são estas paisagens. Dizem sim ok oi olá talvez e não. Sons da rua, tingida por agasalhos. Por pouco tempo. Mais algumas semanas e retornarão às gavetas.

Atravessando a rua. O tempo seco, uma ou outra nuvem. Fumaça dos fogos nos campos ao longe. Lugar pequeno. Nos vimos três vezes, em locais diferentes. Meus amigos usam óculos escuros. Contam piadas e histórias absurdas. Nos cumprimentamos três vezes no mesmo dia. Rimos nas esquinas, à sombra, e combinamos de montar aquela banda de rock. O tempo estava passando. Serviríamos chá entre uma música e outra? Todo mundo envelhece, até mesmo aquelas mulheres que faziam o coro dos refrões do Pink Floyd naquele show em Pompéia. Você viu o filme e as danças do Michael! A voz dele permaneceu boa até o fim. E a do Bono, fazia tempo que já não estava lá grande coisa.

Por enquanto tomo um café. Minhas novidades, digo-lhes, são as mesmas. Poucas coisas mudam. Os autores dos livros. Platão. Salomão. Caminhadas à tarde e apego ao silêncio. A habitual reclusão pontuada por diálogos intermináveis. Díspares eventos, idênticas intensidades. Por não dizer bom dia, uma senhora brigou comigo. Parou-me na rua duas vezes. Respondi-lhe, sou tímido. E ela ignorou.

Conquanto não quisesse sofrer, a Copa do Mundo não me interessou. Caminhei por vários bairros. Ruas vazias, silenciosas, tensas. A voz grave do Galvão era seguida por vaias distantes, xingamentos e hurras. À margem da pista do ginásio, rapazes enrolavam sua seda calmamente, sob a árvore. Ninguém os incomodaria hoje. Viraram-se, ao mesmo tempo, na direção das casas do outro lado do rio. Aplausos, foguetes e cornetas. Gol. Foi gol. Mas, dias depois, bandeiras cabisbaixas e passos apressados se consolavam na praça e na avenida. O pranto da moça da padaria, do outro lado da rua, me informou sobre a derrota. Conquanto não quisesse sofrer, aquecia minhas mãos nos bolsos, naquelas tardes frias.

Aquelas coisas do coração, das quais falava Salomão, me puseram numa situação estranha e quase hostil, em que os objetos eram frios como instrumentos cirúrgicos. Fiquei tateando algo a que pudesse me apegar e ter algum assunto a dizer. Sinceramente, não tenho nada a dizer sobre assuntos passionais, confessei aos amigos, no banco da praça. Então fiquei ouvindo seus relatos. Dores superadas e outras nem tanto. Durante dias fiquei pensando nisto. E escrevi versos. E conclui: todos os amores são tristes. E só se ama uma vez. E escrevi um e-mail a uma pessoa querida, com sinceros pedidos de desculpas. Fica-se pequeno nestas horas. Tudo tem seu preço. Não sofrer tem seu preço. Todos os amores são tristes. Só se ama uma vez. Minhas mãos tremiam nos bolsos, naquelas horas.

Semana passada foi início de férias, e mais alguns dias, recomeçam as aulas. Na última tarde você pode caminhar nos corredores. As carteiras vazias, os quadros, os cartazes com as assinaturas de letrinhas no canto inferior. Quando se fica mais velho, ter um nome parece exigir tanta responsabilidade. As crianças e os adolescentes. Estão subindo seus degraus. Há tanto sofrimento no mundo e isto já foi dito. Gente nova e já machucada, instruindo-se para a sociedade. A cidade irá se renovar. Um dia terão seus filhos. E as aulas recomeçam.

Olho pela janela, pela última vez no inverno, de onde os estudantes costumavam assistir, nos intervalos, o torneio disputado por suas classes. Desço e fico o restante do horário com os poucos alunos que foram à escola. Os meninos jogavam futebol na quadra. As meninas brincavam. Brigavam entre si, sem motivo. Depois, jogaram futebol, de modo desajeitado. Corriam. Sorridentes. Eram quatro horas da tarde. O sol, frágil, gradualmente glacial, tinha seus raios ligeiramente interrompidos pelas silhuetas eufóricas que esparramavam-se no dia, no pátio da quadra, em sombras estiradas que faziam, dos corpos, gigantes em uma espécie de dança, bonita e triste. Solitária.

Há dias em que eu não tenho palavras, disse a mim mesmo, na última tarde. As crianças iriam crescer, e seriam encaminhadas à cidade. Aos sábados. Iríamos nos ver em lojas e supermercados. Muitos iriam embora, porque as pessoas são estas janelas. Elas teriam seus filhos. Dançariam suas músicas. Iriam se machucar. Correndo ao sol. Aulas recomeçando.

sábado, 14 de agosto de 2010

Pascal: "O coração tem razões..."





Blaise Pascal


O coração tem razões ...



     Nascido em Clermont-Ferrand, 19 de Junho de 1623 — Paris, 19 de Agosto de 1662, foi um físico, matemático, filósofo e teólogo francês.
     Abaixo, alguns trechos capitais da obra "Pensamentos".



Artigo II – Miséria do homem sem Deus


120 – A natureza diversifica e imita, a arte imita e diversifica.



Artigo III – Da necessidade da aposta


206 – O silêncio eterno desses espaços infinitos me apavora.
222 – Ateus – que motivos eles tem para afirmar que ressuscitar é impossível? Que era mais difícil: nascer ou ressuscitar, o que jamais foi seja o que for ou o que já foi ainda? Será mais difícil chegar a ser ou voltar a ser? O hábito torna uma coisa fácil, enquanto a ausência de hábito faz a outra impossível: maneira vulgar de raciocinar!



Artigo IV – Dos meios de Crer

253 – Dois excessos: excluir a razão, só admitir a razão.

269 – Submissão e uso da razão, nisso consiste o cristianismo.
273 – Caso tudo fosse submetido à razão, nada haveria em nossa religião de misterioso ou sobrenatural. Caso se contrariem os princípios da razão, nossa religião será absurda e ridícula.
277 - O coração tem suas razões, que a razão não conhece: percebe-se isso em mil coisas. Digo que o coração ama o ser universal naturalmente e a si mesmo naturalmente, segundo aquilo a que se aplique; e ele se endurece contra um ou outro, à sua escolha. Rejeitastes um e conservastes outro: será por causa da razão que vos amais a vós próprios?

278 – É o coração que sente Deus, não a razão. A fé é o Deus sensível ao coração, não à razão.
279 – A fé é um dom de Deus; não penseis que a consideramos um dom do raciocínio. As outras religiões não dizem isso de sua fé: só davam o raciocínio para alcançá-la, o qual, no entanto, não a alcança.

Artigo VI – Os Filósofos

339 – Posso conceber um homem sem mãos, pés, cabeça (pois só a experiência nos ensina que a cabeça é mais necessária do que os pés); mas não posso conceber o homem sem pensamento: seria uma pedra ou um animal.


Artigo VII – A moral e a doutrina

438 – Se o homem não é feito para Deus, por que só se sente feliz em Deus? Se o homem é feito para Deus, por que é tão contrário a Deus?

Artigo VIII – Fundamentos da religião cristã

582 – Transforma-se a própria verdade num ídolo; porque a verdade, fora da caridade, não é Deus: é sua imagem, é um ídolo que não se deve amar nem adorar; menos ainda se deve amar e adorar o seu contrário, que é a mentira.


Fonte: Os Pensadores, Abril Cultural.