sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Crônica: Café em Cabul



[Uma crônica tricordiana]


O som, como o de uma imensa vassoura, vinha da rua, através da janela. Disso falamos na cafeteria. A previsão, no telejornal, anunciava uma terça-feira fria e, depois de sessenta e alguns dias de espera, chuva. A possibilidade é comemorada. O telhado estava apinhado das folhas secas do jardim empoeirado do terreno ao lado. Ruas vazias. Dizem por ...
Dizem por , de uns dias para . Falam sobre uma ideia estranha de que para vencer na vida você tem de ir embora, para outra cidade. Passar em algum concurso e ter um emprego destes que você tem o salário de uma pessoa adulta, um salário que não seja feminino, do tipo que para pagar a assinatura da Marie Claire. Assim, pode-se até comprar um carro. E ir a festas tolas para conhecer alguém interessante. Parece não fazer sentido. Nas horas vagas, como ao voltar pra casa, pensar em casamento, de modo diferente de tudo até então, com o pôr-do-sol migrando do asfalto ao pára brisa e, depois, avermelhando-se no retrovisor. Há muitas formas de se evadir nesta vida. Ir a eventos culturais, ou não. Ir a shows de cowboys, ou não. Ir se entediar com Beethoven, ou não. Certa vez eu desejara ver aquele Ozzy do início, ao vivo, no campo de futebol do bairro, erguendo seus braços envoltos naquelas largas camisas desfiadas por longas barbatanas, como a dos apaches das historinhas do Tex. E ficaríamos aplaudindo riffs de jurássicas gargantas, instrumentos e suas impressões de sinos, de parafusos soltos na madeira corroída, gasta, velha, esfarelando. E isso resgataria, de algum lugar, um passado volitivo. Em nós.
Tapar os ouvidos, a ponto de ouvir somente o que interessa. Isto não se faz, não no deserto. Por enquanto ainda temos o cinema. Os Iñarritu, quando chegam, costumam durar uma semana. E as poltronas ficam ali, estáticas diante da tela. Boquiabertas, sem som possível. E desse modo, também eu, neste último Chris Nolan.
A ideia de que a cidade é um vilarejo-prisão, quem incutiu em nós? Nas ruas sujas centrais, penso no pavor que deve ter sentido D.João VI em 1808 ao chegar ao Rio de Janeiro, muito menor que Três Corações... mas continuamos a não ter realeza, aqui... e a Europa, dizem, nunca fora um lugar muito limpo, como a China daquela época, ou as ruas do império asteca antes dos espanhois.
Nos acostumamos às aberrações, então me lembro que amanhã, pela manhã, os varredores de rua estarão recolhendo todo o fruto cultural de nossa Bienal dos botecos, da propaganda de supermercados, lojas, consultórios odontológicos e candidaturas. Poderíamos ser melhores do que isso? Não me faça mais perguntas. Não tão difíceis.
Nas vilas, as crianças resmungam. As bolas ricocheteiam nas grades, na quina das calçadas. Os caminhões desaparecem na fumaça dos ninjas. O vento está acontecendo. No seu cabelo. Ou no seu riso de buquê de flores. Nas mãos dadas do bebê de colo com sua mãe, no ponto de ônibus. Sabem disso os idosos, admirando-se. Sabem os tímidos ipês de uma rua em reforma, esburacado Afeganistão nosso de cada dia.
Há duas árvores que se curvaram, diante da torrente do rio. Um ritmo ditado em silêncio. E entre nove e dez da manhã, elas ficam luzentes. Como um cartão postal destinado a felizes andarilhos, é o único lugar sob a ponte que vale a pena ser visto.
Não temos tempo para nós. Porque não vivemos neste tempo. Somos pessoas sem fim. Reticências, em nossas camisetas, nos fariam personagens dos quadrinhos, heróis com seus símbolos e finalidades. Então, enquanto lanço meu iô-iô, o presente-sônico, o hoje-agora, o eco ressoa. Sons. Que sons. Que somos.
Uma mão muito invisível levava a rua, para baixo e para cima. E depois de muito tempo, a água escoava. E ouço o som da chuva.

Roberto Ferreira: afegão tricordiano.

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