O som , como o de uma imensa vassoura , vinha da rua , através da janela . Disso falamos na cafeteria. A previsão , no telejornal , anunciava uma terça-feira fria e, depois de sessenta e alguns dias de espera , chuva . A possibilidade é comemorada. O telhado estava apinhado das folhas secas do jardim empoeirado do terreno ao lado . Ruas vazias. Dizem por aí ...
Dizem por aí , de uns dias para cá . Falam sobre uma ideia estranha de que para vencer na vida você tem de ir embora , para outra cidade . Passar em algum concurso e ter um emprego destes que você tem o salário de uma pessoa adulta , um salário que não seja feminino , do tipo que só dê para pagar a assinatura da Marie Claire. Assim , pode-se até comprar um carro . E ir a festas tolas para conhecer alguém interessante. Parece não fazer sentido . Nas horas vagas , como ao voltar pra casa , pensar em casamento , de modo diferente de tudo até então , com o pôr-do-sol migrando do asfalto ao pára brisa e, depois , avermelhando-se no retrovisor . Há muitas formas de se evadir nesta vida . Ir a eventos culturais, ou não . Ir a shows de cowboys , ou não . Ir se entediar com Beethoven, ou não . Certa vez eu desejara ver aquele Ozzy do início , ao vivo , no campo de futebol do bairro , erguendo seus braços envoltos naquelas largas camisas desfiadas por longas barbatanas , como a dos apaches das historinhas do Tex. E ficaríamos aplaudindo riffs de jurássicas gargantas , instrumentos e suas impressões de sinos , de parafusos soltos na madeira corroída, gasta , velha , esfarelando. E isso resgataria, de algum lugar , um passado volitivo. Em nós .
A ideia de que a cidade é um vilarejo-prisão, quem incutiu em nós ? Nas ruas sujas centrais , penso no pavor que deve ter sentido D.João VI em 1808 ao chegar ao Rio de Janeiro , muito menor que Três Corações ... mas continuamos a não ter realeza , aqui ... e a Europa, dizem, nunca fora um lugar muito limpo , como a China daquela época , ou as ruas do império asteca antes dos espanhois.
Nas vilas , as crianças resmungam. As bolas ricocheteiam nas grades , na quina das calçadas . Os caminhões desaparecem na fumaça dos ninjas . O vento está acontecendo. No seu cabelo . Ou no seu riso de buquê de flores . Nas mãos dadas do bebê de colo com sua mãe , no ponto de ônibus . Sabem disso os idosos , admirando-se. Sabem os tímidos ipês de uma rua em reforma, esburacado Afeganistão nosso de cada dia .
Há duas árvores que se curvaram, diante da torrente do rio . Um ritmo ditado em silêncio . E entre nove e dez da manhã , elas ficam luzentes . Como um cartão postal destinado a felizes andarilhos , é o único lugar sob a ponte que vale a pena ser visto .
Uma mão muito invisível levava a rua , para baixo e para cima . E depois de muito tempo , a água escoava. E ouço o som da chuva .
Roberto Ferreira : afegão tricordiano.
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