Ensaio sobre a cegueira
"Um ensaio sobre a visão”
Em sua obra “A linguagem secreta do cinema”, o crítico Jean-Claude Carriére nos conta um episódio singular ocorrido no início do século passado, quando se dava a exibição de um filme numa das colônias francesas na África. Alguns convidados, por questões diplomáticas, compareciam às sessões, mas, por serem muçulmanos, sua rígida tradição os impedia de presenciar representações de formas e da face humana, tarefa esta reservada única e exclusivamente a Deus, no caso, a Alá – não por acaso adotam um alfabeto ornamental para suprir esta falta de figuras. Assim, sentavam-se em suas cadeiras e lá permaneciam, de olhos fechados.
Num momento em que observamos o caos da Faixa de Gaza e os conflitos entre israelenses e ativistas turcos com o mesmo interesse e inclinação que temos em relação ao caos dos fevereiros da Marquês da Sapucaí, somados ao insulto visual dos programas televisivos em que câmeras são estrategicamente instaladas numa casa em que a lógica do Hobbes (“o homem lobo do homem”) vigora, ficamos a pensar no verdadeiro significado da visão e se, caso fôssemos subtraídos de tal capacidade, dela sentiríamos falta já que não a usamos de forma, digamos, crítica.
Em “Ensaio sobre a Cegueira” o gênio Fernando Meirelles – por causa dele podemos lançar fora quase tudo o que se produziu no tal “cinema” brasileiro desde os tempos de “O Pagador de Promessas” – audaciosamente nos mostra isto mesmo que o título sugere, um ensaio de como o ser humano agiria se, repentinamente, perdesse sua visão. É lógico que aquela história de ser fiel ao livro é uma bobagem e fica até engraçado quando nos extras vemos um apreensivo Meirelles acompanhar atentamente as palavras de aprovação pronunciadas, na poltrona ao lado, por ninguém menos que o escritor Saramago, autor da obra em que o filme se baseou. A versão que a ele foi mostrada sofreu várias alterações, até alcançar o formato que tem hoje, mas de modo geral, a essência está lá, pessoas desesperadas, com a visão submersa numa espécie de cegueira branca, num “mar de leite” que, atingindo o grau de peste iminente, faz com que o governo adote medidas extremas, confinando em alojamentos especiais os que dela são portadores.
É claro que ainda não inventaram um filme que superasse o livro. Mais difícil ainda quando este é escrito numa prosa mordaz, sem pontuação, e que os personagens sequer possuem nomes próprios, mas títulos como “a mulher do médico” e “o velho da venda preta” ou até mesmo “o ladrão”.
Mas o compromisso de se aproximar o máximo do original foi cumprido. O que justifica o caos de imagens retorcidas e propositalmente brancas, transparentes, como reflexos do reflexo de espelhos ofuscados por alguma claridade – a da caverna de Platão, talvez –, acompanhadas pela trilha originalíssima do Uakti (outro ponto positivo) e pela atriz Juliane Moore, pálida, aquática como uma água-viva, flutuando na tela. Ninguém mais poderia ocupar este papel, ninguém. A ela caberá a missão de encontrar, nas profundezas emocionais do desastre iminente, a cumplicidade necessária para que se possa dar forma não ao mundo, mas à esperança. O que ela faz quase como um idealismo milagroso, em meio à ordem maltrapilha vigente.
A espécie humana, aqui, se aproxima gradualmente da animal; um pouco mais evoluído, conquanto ainda possua linguagem, embora esteja tão próxima da bestialidade que seria uma questão de tempo até que todos passassem a grunhir. É inversamente proporcional, por exemplo, ao que ocorre com o apóstolo Paulo (episódio citado no filme) que, no contexto cristão, somente depois de ficar cego é que passou de fato a enxergar.
No filme, a válvula de escape para a ausência de fé, como não poderia deixar de ser, é o instinto, que irá alertá-los sobre sua necessidade mais básica, a de se alimentar, o que possibilitará a provisória manutenção da vida – depois também virá o sexo, ironicamente feito “às claras”, tal como os Cínicos da Grécia antiga – mesmo que, assim como nos animais, não se saiba exatamente porque, como aliás em muita gente que anda por aí, como zumbis que pronunciam o mantra “alá-lá-ô, alá-lá-ô”.
E é pela comida que as mulheres tem de se submeter às violências do grupo detentor dos estoques. Cena forte do livro e que em cinema foi em muito amenizada, deixa também evidente o talento de Meirelles em realizar cenas polêmicas sem precisar de toda aquela apelação características de produções nacionais e que, de certo modo, poderia mesmo ser adotado como padrão, evitando, de uma só tacada, o surgimento de futuras beldades da poluição visual como as Lucélias Santos, Veras Fischers e Sônias Bragas de outrora.
Ali, a relação de poder entre os detentores do alimento e os estômagos famintos se torna um microcosmo, que é também a realidade que a grande massa de trabalhadores enfrenta já que, à recusa ao trabalho implica à morte por inanição. Esta é a lei, o status quo, a democracia do lento genocídio, enfim, porém desvelada. Não se pode vê-la porque se é cego, mas pode-se senti-la nas carnes.
Então é mais um ponto já que o problema não é apenas a cegueira visual, mas de um outro tipo, de outra natureza: a cegueira da cegueira. Mesmo estes cegos não são capazes de compreender que apenas mediante a colaboração mútua é que suas vidas poderiam melhorar, ao menos o suficiente para se estabelecerem como uma nova sociedade – a de cegos agora – e aprimorar suas deficiências a ponto de reiniciar e construir uma nova civilização. Por isso é tão chocante o filme de Meirelles (ou o livro de Saramago). Por tocar a dolorosa e trágica ferida por trás da metáfora: já estamos neste estágio de cegueira e seria preciso reaprender a enxergar, processar as coisas, repensá-las e relacionar-se com elas, de modo a modificá-las em toda sua extensão. Daí que enxergar passa a ser também viver, existir, e existir de modo verdadeiro, milagroso e correto. Enxergar passa a ser virtude. Talvez a mensagem mais cruel e bela do filme.
Em uma cena marcante, certo personagem ao ter sua visão restabelecida por algum motivo misterioso, exclama ao ver o rosto de uma amiga, de quem até então apenas conhecia a voz, presente nos maus bocados do alojamento de cegos. E ele exclama entusiasmado: “você é linda!!! Tudo é lindo!!!”. Como se tivesse sido presenteado, no caso, com a imagem de um simples rosto. Como diziam os antigos gregos: estamos cercados de tanta beleza. Esta que para eles era o Cosmos e que originou a palavra cosmético.
Quando Carriére, citado no início do texto, escreveu seu livro, alegou que o único propósito era nos ajudar a abrir um pouco mais nossos olhos. Já Saramago nos alerta: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”. Estamos vendo demais e enxergando de menos. O que constitui, aqui, uma grande responsabilidade. Talvez por isso, não por uma questão de prudência ou reverência, mas pela mais pura covardia mesmo, muita gente opte por ficar como os tais espectadores muçulmanos. De olhos bem fechados.
Em sua obra “A linguagem secreta do cinema”, o crítico Jean-Claude Carriére nos conta um episódio singular ocorrido no início do século passado, quando se dava a exibição de um filme numa das colônias francesas na África. Alguns convidados, por questões diplomáticas, compareciam às sessões, mas, por serem muçulmanos, sua rígida tradição os impedia de presenciar representações de formas e da face humana, tarefa esta reservada única e exclusivamente a Deus, no caso, a Alá – não por acaso adotam um alfabeto ornamental para suprir esta falta de figuras. Assim, sentavam-se em suas cadeiras e lá permaneciam, de olhos fechados.
Num momento em que observamos o caos da Faixa de Gaza e os conflitos entre israelenses e ativistas turcos com o mesmo interesse e inclinação que temos em relação ao caos dos fevereiros da Marquês da Sapucaí, somados ao insulto visual dos programas televisivos em que câmeras são estrategicamente instaladas numa casa em que a lógica do Hobbes (“o homem lobo do homem”) vigora, ficamos a pensar no verdadeiro significado da visão e se, caso fôssemos subtraídos de tal capacidade, dela sentiríamos falta já que não a usamos de forma, digamos, crítica.
Em “Ensaio sobre a Cegueira” o gênio Fernando Meirelles – por causa dele podemos lançar fora quase tudo o que se produziu no tal “cinema” brasileiro desde os tempos de “O Pagador de Promessas” – audaciosamente nos mostra isto mesmo que o título sugere, um ensaio de como o ser humano agiria se, repentinamente, perdesse sua visão. É lógico que aquela história de ser fiel ao livro é uma bobagem e fica até engraçado quando nos extras vemos um apreensivo Meirelles acompanhar atentamente as palavras de aprovação pronunciadas, na poltrona ao lado, por ninguém menos que o escritor Saramago, autor da obra em que o filme se baseou. A versão que a ele foi mostrada sofreu várias alterações, até alcançar o formato que tem hoje, mas de modo geral, a essência está lá, pessoas desesperadas, com a visão submersa numa espécie de cegueira branca, num “mar de leite” que, atingindo o grau de peste iminente, faz com que o governo adote medidas extremas, confinando em alojamentos especiais os que dela são portadores.
É claro que ainda não inventaram um filme que superasse o livro. Mais difícil ainda quando este é escrito numa prosa mordaz, sem pontuação, e que os personagens sequer possuem nomes próprios, mas títulos como “a mulher do médico” e “o velho da venda preta” ou até mesmo “o ladrão”.
Mas o compromisso de se aproximar o máximo do original foi cumprido. O que justifica o caos de imagens retorcidas e propositalmente brancas, transparentes, como reflexos do reflexo de espelhos ofuscados por alguma claridade – a da caverna de Platão, talvez –, acompanhadas pela trilha originalíssima do Uakti (outro ponto positivo) e pela atriz Juliane Moore, pálida, aquática como uma água-viva, flutuando na tela. Ninguém mais poderia ocupar este papel, ninguém. A ela caberá a missão de encontrar, nas profundezas emocionais do desastre iminente, a cumplicidade necessária para que se possa dar forma não ao mundo, mas à esperança. O que ela faz quase como um idealismo milagroso, em meio à ordem maltrapilha vigente.
A espécie humana, aqui, se aproxima gradualmente da animal; um pouco mais evoluído, conquanto ainda possua linguagem, embora esteja tão próxima da bestialidade que seria uma questão de tempo até que todos passassem a grunhir. É inversamente proporcional, por exemplo, ao que ocorre com o apóstolo Paulo (episódio citado no filme) que, no contexto cristão, somente depois de ficar cego é que passou de fato a enxergar.
No filme, a válvula de escape para a ausência de fé, como não poderia deixar de ser, é o instinto, que irá alertá-los sobre sua necessidade mais básica, a de se alimentar, o que possibilitará a provisória manutenção da vida – depois também virá o sexo, ironicamente feito “às claras”, tal como os Cínicos da Grécia antiga – mesmo que, assim como nos animais, não se saiba exatamente porque, como aliás em muita gente que anda por aí, como zumbis que pronunciam o mantra “alá-lá-ô, alá-lá-ô”.
E é pela comida que as mulheres tem de se submeter às violências do grupo detentor dos estoques. Cena forte do livro e que em cinema foi em muito amenizada, deixa também evidente o talento de Meirelles em realizar cenas polêmicas sem precisar de toda aquela apelação características de produções nacionais e que, de certo modo, poderia mesmo ser adotado como padrão, evitando, de uma só tacada, o surgimento de futuras beldades da poluição visual como as Lucélias Santos, Veras Fischers e Sônias Bragas de outrora.
Ali, a relação de poder entre os detentores do alimento e os estômagos famintos se torna um microcosmo, que é também a realidade que a grande massa de trabalhadores enfrenta já que, à recusa ao trabalho implica à morte por inanição. Esta é a lei, o status quo, a democracia do lento genocídio, enfim, porém desvelada. Não se pode vê-la porque se é cego, mas pode-se senti-la nas carnes.
Então é mais um ponto já que o problema não é apenas a cegueira visual, mas de um outro tipo, de outra natureza: a cegueira da cegueira. Mesmo estes cegos não são capazes de compreender que apenas mediante a colaboração mútua é que suas vidas poderiam melhorar, ao menos o suficiente para se estabelecerem como uma nova sociedade – a de cegos agora – e aprimorar suas deficiências a ponto de reiniciar e construir uma nova civilização. Por isso é tão chocante o filme de Meirelles (ou o livro de Saramago). Por tocar a dolorosa e trágica ferida por trás da metáfora: já estamos neste estágio de cegueira e seria preciso reaprender a enxergar, processar as coisas, repensá-las e relacionar-se com elas, de modo a modificá-las em toda sua extensão. Daí que enxergar passa a ser também viver, existir, e existir de modo verdadeiro, milagroso e correto. Enxergar passa a ser virtude. Talvez a mensagem mais cruel e bela do filme.
Em uma cena marcante, certo personagem ao ter sua visão restabelecida por algum motivo misterioso, exclama ao ver o rosto de uma amiga, de quem até então apenas conhecia a voz, presente nos maus bocados do alojamento de cegos. E ele exclama entusiasmado: “você é linda!!! Tudo é lindo!!!”. Como se tivesse sido presenteado, no caso, com a imagem de um simples rosto. Como diziam os antigos gregos: estamos cercados de tanta beleza. Esta que para eles era o Cosmos e que originou a palavra cosmético.
Quando Carriére, citado no início do texto, escreveu seu livro, alegou que o único propósito era nos ajudar a abrir um pouco mais nossos olhos. Já Saramago nos alerta: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”. Estamos vendo demais e enxergando de menos. O que constitui, aqui, uma grande responsabilidade. Talvez por isso, não por uma questão de prudência ou reverência, mas pela mais pura covardia mesmo, muita gente opte por ficar como os tais espectadores muçulmanos. De olhos bem fechados.
Comprei o livro faz tempo (ainda não consegui ler), e o filme só vem depois da leitura... o inverso é impossível.
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