segunda-feira, 14 de junho de 2010

Karenina...Karenina...


E de repente, na primeira centena de páginas de Anna Karenina, de Tolstoi, surge a seguinte passagem:

O ir e vir das pessoas incomodava-a [Anna], e quando o comboio se pôs em andamento foi-lhe impossível não prestar atenção aos ruídos dos vagões. Mas daí a pouco distraía-se com a nevasca que estava caindo, açoitando a vidraça da portinhola esquerda, com o condutor que passava, muito agasalhado e coberto de neve, e os comentários a respeito da tempestade que se desencadeava. Mais adiante tudo se repetia, o trepidar da composição, a neve na vidraça, as bruscas mudanças de temperatura, do calor para o frio e do frio para o calor, as mesmas caras na obscuridade e as mesmas vozes. Contudo, conseguira principiar a ler e compreender o que lia. Ánuchka já dormitava, segurando entre as mãos enluvadas – uma das luvas estava rota – o saquinho vermelho em cima dos joelhos. Ana Arcádievna lia e compreendia o que lia, mas o desejo que ela própria tinha de viver era grande demais para se interessar pela vida dos outros. Se a heroína do romance tratava um doente, Ana tinha desejos de andar em passos leves pelo quarto do enfermo; se um membro do Parlamento pronunciava um discurso, ela própria desejaria tê-lo pronunciado; se Lady Mary cavalgava atrás de sua matilha, irritando a nora e a todos assombrando com a sua audácia, Ana ambicionava ser ela própria a galopar. Mas nada tinha de fazer! E lá ia revolvendo nas mãos a espátula de cortar papel e prosseguindo na leitura...( ) abandonou o livro e recostou-se no assento, apertando a espátula entre os dedos.


Comentário pessoal: o livro possui, dependendo da edição, cerca de 800 páginas. Nesse caso, assim como se faz com a recomendação “até mesmo os melhores livros merecem ser deixados de lado”, de Proust, deveríamos ignorar completamente a observação de Karenina de Tolstoi e prosseguir com a leitura.


* no detalhe: Greta Garbo (Anna Karenina, 1935, dir: Clarence Brown).
Leon Tolstoi (1828-1910)

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