sábado, 26 de junho de 2010

A tarde, pra recomeçar...










A tarde, pra recomeçar
O sábado, pra se nascer
.

[Uma crônica tricordiana]
- versão integral -



I



Pela manhã, o casal trocava insultos. A criança de colo chorava. E em nossas mentes a imagem desenhava-se pelos seus sons, e de repente víamos um bebê espernear, como quem quisesse se libertar deste mundo. Por uma família que não mais existe, confissões emolduradas pelo pranto e pedidos para ir embora. Você acabou com a minha vida... acabou...Por favor, vá embora daqui.
Por Deus, dizem os vizinhos. Parem com isso. Alguém podia se machucar, pensou a multidão que se formava. Versões imaginárias do fato, misto de suspeita e curiosidade, necessitando de algum tipo de comprovação.
Ana corre para o telefone, diz que irá chamar a polícia. Tira a mão de mim, grita. Me deixa em paz, inferno. E o mundo deve girar em sua cabeça, como se estivesse acabando. Ela não sabe, mas à tarde irá ver a chuva de sua janela.

Por favor... vá embora daqui... definha em soluços.



II



Uma festa, parece acontecer em algum lugar, disse o olhar do operário. Era Matias na poltrona do ônibus da empresa. E nós estamos aqui, pensou, indo trabalhar. Faltavam-lhe as palavras certas, mas havia o olhar perdido. Praticava um monólogo, próprio dos que enxergam nas entrelinhas. Dizem que o trabalho enobrece o homem. Mas ele sabia que isso era uma grande mentira. Porque amar enobrece o homem. A arte enobrece o homem. Escrever poemas. Correr na chuva enobrece o homem. Louvar a Deus. Passear com as crianças. São coisas possíveis, ainda que em Três Corações, esse lugar, aqui, cheio de estradas.
Tristemente. Esse lugar aqui, cheio de estradas. E placas pedindo pra gente ir embora, como numa súplica. Vá embora, por favor. Vá embora daqui. Mal imagina, a linguagem da estrada, que pessoas irão correr sorrindo, sentindo o vento no rosto, fingindo fugir de um temporal, nesse lugar. Os olhos se fecham. E o suspiro de cansaço transporta um som de prece.

Por favor... vá...


III



Quem sentirá falta de você, quando você se for? Perguntava-se ao voltar pra casa o balconista Gustavo. Apertado entre braços, ombros, e apostilas de um curso vespertino. Observava o sinal de trânsito. Fechado. Aberto. E sobe-se a rua íngreme.
Quem sentirá sua falta? Perdemos muita gente, pensou. Tricordianos, artistas. professores. Todo dia, as agências funerárias, da janela do ônibus, a gente pode ver. Estão cheias de prantos, santos, flores. Lemos os salmos, procuramos saídas e, mais uma vez por hoje sofremos da maneira que o coração fica mais silencioso, aos soluços.
Reparava em como, nestes instantes, os passageiros oscilavam entre pesares e uma sensação de alívio, de a hora dos que ali estão à janela ainda não ter chegado, tal como a daqueles que, no frio salão, são velados. De tudo, o que mais o impressionava, eram as árvores com seu hino de grilos à tarde. Elas existem alheia a tudo isto. Quem teria escrito tal canção?
O veículo acelera e Gustavo segura o corpo. Dali, os exauridos pela jornada de trabalho vêem as nuvens pesadas. E se admiram com a chuva fina, de um canto a outro. Em toda cidade. Pareceu-lhes que, finalmente, como moradores de um local tão pequeno, agora estavam todos juntos. Embalados numa onda tranqüila.




IV



Um amor que passou. Disse só o estudante Pedro com o sorvete na mão. Um amor que passou. Que não era nada daquilo que se pensaria ser. Nem ele. Ou ela. Estranhos numa cidade pequena. Vidas pequenas, assuntos cabiam em mensagens de celular. Num olá. Em uma certidão de nascimento. Lá se lê que um dia nascemos. E pronto. Tudo começou. Uma identidade que é querer saber o que se é. Isso é tudo o que somos. Acenos de olás nas extremidades da praça. Uma tarde quente e um sorriso que não aconteceu. E que talvez quisesse dizer alguma coisa. Talvez adeus. Talvez tudo bem. E estas coisas juntas. Para ambos. Talvez eu não gostasse do que nos tornamos. Ou do que eu havia me tornado, para estar com você, pensou. Um canal que se perdeu como num toque equivocado no controle remoto. Foi-se também aquele dia, lá longe. Tudo bem. Irá dizer. Nesse lugar. Árvores robustas. Nuvens robustas. Chovia tão fino, como fios de cabelos, como os de criança. Uma pétala brincava no asfalto. Aos sábados, tudo era possível nesse asfalto deserto. Outra estrada escapando. Acelerada. Aqui. Não mais aqui.

V
Ana caminha sobre a parte alta da casa. Laje entre antenas. Fios de postes. Lá embaixo. O rio. O prata deslizando nas pedras da parte rasa, o clube dos militares e o lago congelado pelo calor prateado. De modo muito furtivo, ameaçava formar ondas avermelhadas o poente. E as nuvens estavam lá, do outro lado, robustas.
Ana grita por alguém na outra parte do quarteirão. Por Deus ou algum amigo. Em bairros como esse, mesmo o som é sinal de democracia. Talvez chamasse por alguma criança, avisando-a para esconder da chuva, caso ficasse mais forte. Ou por aquelas pessoas anônimas, que com freqüência vemos correndo e sorrindo, sentindo o vento no rosto. Fingindo fugir de um temporal. Certamente alguém lhe acena, imagino. Ao longe.
Então ela desce e brinca com o bebê, adormecido e exalando aromas de óleos e xampus. Nina-o de um lado para outro, com uma cantiga doce e quase triste. É tudo o que tem o agora. Somente. Nada haveria de tão enobrecedor. Um agora como esse.
Da janela, ela observa o batismo da chuva fina. Achou estranhíssimo que essa cortina nublada tomasse quase todo o céu, de uma hora para outra. Estávamos todos perdoados e limpos, deve ter pensado. Todos perdoados e limpos.






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