segunda-feira, 28 de junho de 2010

Filosofia oriental? Como assim?

Por que a filosofia oriental não pode ser chamada de filosofia?

Magister Dixi – “o mestre disse”. A expressão latina refere-se à aceitação do que é dito por um superior, sem questionamento. Na Idade Média isso foi bastante comum entre os escolásticos.

Vale, porém, lembrar que os teólogos medievais tratavam de assuntos filosóficos diversos, não exclusivamente de teor teológico. Isso não ocorre nas filosofias não ocidentais, que invariavelmente, reportam a um guru. Por isso, elas não são consideradas filosofia.
P.S.: novas considerações sobre este assunto serão postadas.

Livro: O Exílio e o Reino


Em época de Copa do (i)Mundo, vale indicar a obra O Exílio e o Reino, de Albert Camus. São seis contos que discutem a oposição entre os extremos da chamada “consciência da revolta” camusiana.
De um lado, a solidão, a condição de marginal dos que rejeitam o fluir do mundo, a vida de gado imposta pelos sistemas e poderes que conduzem a dita civilização. A este, anti-herói solitário, arquétipo do universo camusiano, que se recusa a interpretar um papel que lhe é imposto e opta pela sinceridade, o preço a ser pago é o EXÍLIO.
Na outra extremidade, está aquele que se conforma com o papel que lhe é atribuído. Transpondo para nossa realidade, seria o torcedor da seleção brasileira, uniformizado e eufórico. Aquele, cuja história pessoal repousa na história universal. Ação que, na obra de Camus, se aproxima do conceito de felicidade, de REINO.

Independentemente da extremidade que se ocupa, a leitura é recomendada. Destaque para os contos: “A mulher adúltera”, “Os mudos”, “O hóspede” e “Jonas ou o Artista Trabalhando”.



Vamos celebrar a estupidez humana, a estupidez de
todas as nações.
O meu país com sua corja de assassinos, covardes,
estupradores e ladrões...
Vamos comemorar feito idiotas,
a cada Fevereiro e Feriado...
é festa da torcida campeã!”
Perfeição - Legião Urbana.

sábado, 26 de junho de 2010

Enquanto isso, na sala de aula...


Versículo da semana:

Jeremias 29.13

"Vocês me procurarão e me acharão quando me procurarem de todo o coração."

A tarde, pra recomeçar...










A tarde, pra recomeçar
O sábado, pra se nascer
.

[Uma crônica tricordiana]
- versão integral -



I



Pela manhã, o casal trocava insultos. A criança de colo chorava. E em nossas mentes a imagem desenhava-se pelos seus sons, e de repente víamos um bebê espernear, como quem quisesse se libertar deste mundo. Por uma família que não mais existe, confissões emolduradas pelo pranto e pedidos para ir embora. Você acabou com a minha vida... acabou...Por favor, vá embora daqui.
Por Deus, dizem os vizinhos. Parem com isso. Alguém podia se machucar, pensou a multidão que se formava. Versões imaginárias do fato, misto de suspeita e curiosidade, necessitando de algum tipo de comprovação.
Ana corre para o telefone, diz que irá chamar a polícia. Tira a mão de mim, grita. Me deixa em paz, inferno. E o mundo deve girar em sua cabeça, como se estivesse acabando. Ela não sabe, mas à tarde irá ver a chuva de sua janela.

Por favor... vá embora daqui... definha em soluços.



II



Uma festa, parece acontecer em algum lugar, disse o olhar do operário. Era Matias na poltrona do ônibus da empresa. E nós estamos aqui, pensou, indo trabalhar. Faltavam-lhe as palavras certas, mas havia o olhar perdido. Praticava um monólogo, próprio dos que enxergam nas entrelinhas. Dizem que o trabalho enobrece o homem. Mas ele sabia que isso era uma grande mentira. Porque amar enobrece o homem. A arte enobrece o homem. Escrever poemas. Correr na chuva enobrece o homem. Louvar a Deus. Passear com as crianças. São coisas possíveis, ainda que em Três Corações, esse lugar, aqui, cheio de estradas.
Tristemente. Esse lugar aqui, cheio de estradas. E placas pedindo pra gente ir embora, como numa súplica. Vá embora, por favor. Vá embora daqui. Mal imagina, a linguagem da estrada, que pessoas irão correr sorrindo, sentindo o vento no rosto, fingindo fugir de um temporal, nesse lugar. Os olhos se fecham. E o suspiro de cansaço transporta um som de prece.

Por favor... vá...


III



Quem sentirá falta de você, quando você se for? Perguntava-se ao voltar pra casa o balconista Gustavo. Apertado entre braços, ombros, e apostilas de um curso vespertino. Observava o sinal de trânsito. Fechado. Aberto. E sobe-se a rua íngreme.
Quem sentirá sua falta? Perdemos muita gente, pensou. Tricordianos, artistas. professores. Todo dia, as agências funerárias, da janela do ônibus, a gente pode ver. Estão cheias de prantos, santos, flores. Lemos os salmos, procuramos saídas e, mais uma vez por hoje sofremos da maneira que o coração fica mais silencioso, aos soluços.
Reparava em como, nestes instantes, os passageiros oscilavam entre pesares e uma sensação de alívio, de a hora dos que ali estão à janela ainda não ter chegado, tal como a daqueles que, no frio salão, são velados. De tudo, o que mais o impressionava, eram as árvores com seu hino de grilos à tarde. Elas existem alheia a tudo isto. Quem teria escrito tal canção?
O veículo acelera e Gustavo segura o corpo. Dali, os exauridos pela jornada de trabalho vêem as nuvens pesadas. E se admiram com a chuva fina, de um canto a outro. Em toda cidade. Pareceu-lhes que, finalmente, como moradores de um local tão pequeno, agora estavam todos juntos. Embalados numa onda tranqüila.




IV



Um amor que passou. Disse só o estudante Pedro com o sorvete na mão. Um amor que passou. Que não era nada daquilo que se pensaria ser. Nem ele. Ou ela. Estranhos numa cidade pequena. Vidas pequenas, assuntos cabiam em mensagens de celular. Num olá. Em uma certidão de nascimento. Lá se lê que um dia nascemos. E pronto. Tudo começou. Uma identidade que é querer saber o que se é. Isso é tudo o que somos. Acenos de olás nas extremidades da praça. Uma tarde quente e um sorriso que não aconteceu. E que talvez quisesse dizer alguma coisa. Talvez adeus. Talvez tudo bem. E estas coisas juntas. Para ambos. Talvez eu não gostasse do que nos tornamos. Ou do que eu havia me tornado, para estar com você, pensou. Um canal que se perdeu como num toque equivocado no controle remoto. Foi-se também aquele dia, lá longe. Tudo bem. Irá dizer. Nesse lugar. Árvores robustas. Nuvens robustas. Chovia tão fino, como fios de cabelos, como os de criança. Uma pétala brincava no asfalto. Aos sábados, tudo era possível nesse asfalto deserto. Outra estrada escapando. Acelerada. Aqui. Não mais aqui.

V
Ana caminha sobre a parte alta da casa. Laje entre antenas. Fios de postes. Lá embaixo. O rio. O prata deslizando nas pedras da parte rasa, o clube dos militares e o lago congelado pelo calor prateado. De modo muito furtivo, ameaçava formar ondas avermelhadas o poente. E as nuvens estavam lá, do outro lado, robustas.
Ana grita por alguém na outra parte do quarteirão. Por Deus ou algum amigo. Em bairros como esse, mesmo o som é sinal de democracia. Talvez chamasse por alguma criança, avisando-a para esconder da chuva, caso ficasse mais forte. Ou por aquelas pessoas anônimas, que com freqüência vemos correndo e sorrindo, sentindo o vento no rosto. Fingindo fugir de um temporal. Certamente alguém lhe acena, imagino. Ao longe.
Então ela desce e brinca com o bebê, adormecido e exalando aromas de óleos e xampus. Nina-o de um lado para outro, com uma cantiga doce e quase triste. É tudo o que tem o agora. Somente. Nada haveria de tão enobrecedor. Um agora como esse.
Da janela, ela observa o batismo da chuva fina. Achou estranhíssimo que essa cortina nublada tomasse quase todo o céu, de uma hora para outra. Estávamos todos perdoados e limpos, deve ter pensado. Todos perdoados e limpos.






Tira-me a luz dos olhos (Rilke)

Tira-me a luz dos olhos - continuarei a ver-te
Tapa-me os ouvidos - continuarei a ouvir-te
E, mesmo sem pés, posso caminhar para ti
E, mesmo sem boca, posso chamar por ti.

Arranca-me os braços e tocar-te-ei
Com o meu coração como com uma mão...
Despedaça-me o coração - e o meu cérebro baterá
E, mesmo que faças do meu cérebro uma fogueira,
Continuarei a trazer-te no meu sangue


Rainer Maria Rilke

Música: Fox In The Snow









Fox In The Snow
Raposa Na Neve

Fox in the snow, where do you go
Raposa na neve, onde você vai
To find something you could eat
Para achar algo pra comer
Cause word out on the street is you are starving
Porque a palavra na rua é que você está faminta
Dont let yourself go hungry now
Não se deixe ficar com fome agora
Dont let yourself grow cold
Não se deixe ficar com frio
Fox in the snow
Raposa na neve


Girl in the snow, where do you go
Menina na neve, onde você vai
To find someone who will do
Para achar alguém que vá ouvir
To tell someone all the truth before it kills you
Para contar para alguém toda a verdade antes que isso te mate
And listen to your crazy laugh
E escutar sua enlouquecida gargalhada
Before you hang a right
Antes de você se suspender
And disappear from sight.
E desaparecer de vista
What do they know anyway?
O que eles sabem de qualquer forma?
You read it in a book
Você leu isso num livro
What do they know anyway?
O que eles sabem de qualquer forma?
You read it in a book tonight
Você leu isso num livro à noite


Boy on the bike, what are you like
Menino na bicicleta, do que você gosta
As you cycle round the town
quando pedala pela cidade
You’re going up, you’re going down, you’re going nowhere.
Você vai para cima, você vai para baixo, você vai para lugar nenhum
It’s not as if they’re paying you
Não é como se eles estivessem te pagando
It’s not as if it’s fun.
Não é como se isso fosse divertido
At least not anymore
Pelo menos não mais
When your legs are black and blue
Quando sua pernas forem pretas e azuis
Please can you take a break
Por favor, pode dar uma pausa
When your legs are black and blue
Quando suas pernas forem pretas e azuis
Can you take a holiday
Está na hora de um feriado.


Kid in the snow, where do you go, it only happens once a year
Criança na neve, onde você vai, isso só acontece uma vez por ano
It only happens once a lifetime, make the most of it.
Isso só acontece uma vez na vida, aproveite ao máximo.
Second just to being born.
um instante para nascer
Second to dying, too.
um instante para morrer, também
What else would you do
O que mais você faria?
What else would you do
O que mais você faria?
What else would you do
O que mais você faria?
What else would you do
O que mais você faria?


Fox in the snow
Raposa na neve
When your legs looking black and blue
Quando suas pernas parecerem pretas e azuis
Fox in the snow
Raposa na neve
It’s not as if they’re paying you
Não é como se eles estivessem te pagando
Fox in the snow
Raposa na neve
When your legs looking black and blue
Quando suas pernas parecerem pretas e azuis
Fox in the snow
Raposa na neve
It’s not as if they’re paying you
Não é como se eles estivessem te pagando
Fox in the snow
Raposa na neve
Fox in the snow.
Raposa na neve
* From the album: When you're feeling sinister...

segunda-feira, 14 de junho de 2010

...nos varais...no céu deserto


Versículo da semana:



Gálatas 4:16


"Tornei-me, acaso, vosso inimigo, porque vos disse a Verdade?"


Karenina...Karenina...


E de repente, na primeira centena de páginas de Anna Karenina, de Tolstoi, surge a seguinte passagem:

O ir e vir das pessoas incomodava-a [Anna], e quando o comboio se pôs em andamento foi-lhe impossível não prestar atenção aos ruídos dos vagões. Mas daí a pouco distraía-se com a nevasca que estava caindo, açoitando a vidraça da portinhola esquerda, com o condutor que passava, muito agasalhado e coberto de neve, e os comentários a respeito da tempestade que se desencadeava. Mais adiante tudo se repetia, o trepidar da composição, a neve na vidraça, as bruscas mudanças de temperatura, do calor para o frio e do frio para o calor, as mesmas caras na obscuridade e as mesmas vozes. Contudo, conseguira principiar a ler e compreender o que lia. Ánuchka já dormitava, segurando entre as mãos enluvadas – uma das luvas estava rota – o saquinho vermelho em cima dos joelhos. Ana Arcádievna lia e compreendia o que lia, mas o desejo que ela própria tinha de viver era grande demais para se interessar pela vida dos outros. Se a heroína do romance tratava um doente, Ana tinha desejos de andar em passos leves pelo quarto do enfermo; se um membro do Parlamento pronunciava um discurso, ela própria desejaria tê-lo pronunciado; se Lady Mary cavalgava atrás de sua matilha, irritando a nora e a todos assombrando com a sua audácia, Ana ambicionava ser ela própria a galopar. Mas nada tinha de fazer! E lá ia revolvendo nas mãos a espátula de cortar papel e prosseguindo na leitura...( ) abandonou o livro e recostou-se no assento, apertando a espátula entre os dedos.


Comentário pessoal: o livro possui, dependendo da edição, cerca de 800 páginas. Nesse caso, assim como se faz com a recomendação “até mesmo os melhores livros merecem ser deixados de lado”, de Proust, deveríamos ignorar completamente a observação de Karenina de Tolstoi e prosseguir com a leitura.


* no detalhe: Greta Garbo (Anna Karenina, 1935, dir: Clarence Brown).
Leon Tolstoi (1828-1910)

Filmes de ontem e hoje: Babel

As feridas abertas de Babel

O grande nome do Oscar de 2008, que não levou a estatueta de melhor filme, é mais um enredo de narrativa fragmentada do diretor Mexicano Alejandro Gonzalez Iñarritu que, desta vez, explora a idéia da incomunicabilidade entre os seres humanos, filhos da tecnologia e dos relacionamentos virtuais.
Trata-se de quatro histórias que se desenvolvem paralelamente, aparentemente sem um ponto em comum, mas que aos poucos vão se entrelaçando e ganhando corpo. Estilo este que ganhou notoriedade com Short Cuts (1993), de Robert Altman, e influenciou tantas boas obras, incluindo 21 gramas e Amores Brutos – imperdíveis –, de Iñarritu, que compõem sua trilogia do caos.
Neste, um casal americano passa uma temporada (férias?exílio? terapia?) em um deserto marroquino. Pretendem se curar de uma perda que abalou seu relacionamento. Por que viemos para cá?, pergunta a mal-humorada Susan (Cate Blanchet). Para ficarmos sós, responde desolado o enrugado Richard (Brad Pitt, com olheiras que remetem a Benicio Del Toro em 21 gramas).
Perto dali, um humilde camponês presenteia, com um rifle, seus dois filhos, Ahmed (Said Tarchani) e Youssef (Boubker At El Caid), garotos na puberdade. Para espantar os chacais que devoram suas cabras, ele alega. Essa arma irá desencadear os eventos que ligarão os protagonistas. Aos garotos pertencem a parte mais bela do filme, o vento no topo da montanha, pessoas livres, sem dor.
Enquanto isso, nos Estados Unidos, a imigrante mexicana ilegal, Amélia(Adriana Barraza), que trabalha como babá, precisa visitar seu país para participar da festa de casamento do filho. Como não consegue uma folga do trabalho, leva consigo os filhos de seus patrões. Detalhe: um casal de crianças lourinhas, angelicais. Atenção para esta história. Aqui está personificada a colonização ao contrário. Ou seja, os brancos, desta vez, são vítimas da indolência e irresponsabilidade dos nativos do Novo (Terceiro) Mundo. O choque cultural é inevitável. Novamente, aqui, os adultos atrapalhando tudo. Voltar para os EUA com um motorista bêbado e sem visto de entrada? E o pior, com duas crianças americanas, adormecidas no banco de trás? Quem escreveria um roteiro destes? Bem, em se tratando dos filmes de Iñarritu, tudo é possível. Os personagens estão no limiar de sua vida. Vivendo em total vertigem, diria um poeta tricordiano marcatiano. Obviamente que o tema da imigração não é novo. Crash (2005), filme que você poderia assistir em slow motion só para apreciar melhor a obra, dissecou o assunto. Entretanto, a cena do deserto é muito sugestiva. Qual o lugar das crianças num mundo onde os adultos não sabem aonde ir?
Em Tókio, a adolescente Chieko quer existir. Seu tumultuado relacionamento com o pai (um personagem chave, quase um arquétipo do insistente Deus cristão e seu amor incondicional) acentua a já deficitária comunicação entre eles. Surda-muda, traumatizada com a perda de um parente, ela deseja ser amada, a seu modo. E é ela quem torna a linguagem uma presença de importância quase sólida. A linguagem do toque. O mesmo toque ignorado pelo entediado casal americano no ônibus marroquino, para ela, teria um sentido redentor. Decepcionada com a arrogância das pessoas que possuem todos os sentidos, as chamadas pessoas normais, Chieko sai com os amigos em busca de experiências. Seu comportamento auto-destrutivo é quase criminoso. À ela pertence a segunda cena mais angustiante da obra. Seu deserto não é como o da mexicana à procura das crianças. O dela é o ritmo frenético dos jovens de uma danceteria multicolorida, embalados pelo som que ela não pode ouvir. Sua nudez, tão explorada o tempo todo (chega a ser ultrajante, a ponto de o expectador se perguntar “por que?”) tem a ver com o fato de ela querer se esconder. O único momento em que é capaz de emitir um som, ela chora.
Pessoas no limite. Culpas. Desentendimentos. Um certo clima de ameaça terrorista e arrogância americana que, se pretendiam ser elementos pertinentes da trama, não foram bem sucedidos, secundários que se tornaram tamanha a austeridade dos dramas menores, que dizem respeito ao mundo particular das pessoas comuns.
Babel é uma fábula sobre o homem moderno. Sobre as crianças que devemos ser, seja para nos libertarmos dos pesos existenciais, seja para alcançarmos o Reino dos Céus. Fazendo uso do inglês, espanhol, berbere, japonês ou da linguagem dos sinais, é um filme onde as imagens falam num idioma à parte, transcendendo a importância narrativa das próprias histórias. Talvez seja a maneira que Iñarritu encontrou de partilhar sua fé, ainda que nas entrelinhas, como se sussurrasse.



“Venham, desçamos e confundamos a língua que falam, para que não entendam

mais uns aos outros. Assim o Senhor os dispersou dali por toda a terra...".

Gênesis 11:7-8 NVI

como um recém nascido




dentre os que morreram

dentre os que já não mais

um dos que pereceram



entre os novos imortais




* no detalhe: Agaetis Byrjun (Sigur Rós - 1999)

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Feriado


















...e assim


a cidade

repousa ...

Filmes locados por engano:






DISTRITO 9







A trama: uma gigantesca nave espacial surge sobre a cidade sul africana de Joanesburgo. Como um ônibus encalhado, cujos pedaços vão caindo na população, durante três anos ela fica lá, parada e esfarelando. Até que uma força especial decide invadí-la e travar contato com as maltrapilhas criaturas que ali se encontram.

Peculiaridades extraterrenas:
o aspecto: semelhantes a “camarões” e emitem um som incômodo, como se as palavras borbulhassem.
o comportamento: São ludibriados facilmente, como se fossem débeis mentais,
as habitações: mistura de campo de refugiados com favelas, ou tudo isso junto.
o cumprimento da lei: a ordem de despejo que expulsa os ETs de suas moradias. E eles ainda são forçados a assinar um documento. Repito: eles são forçados a assinar o tal documento!!!
as expressões faciais: às vezes, as criaturas lançam um olhar de piedade idêntico ao daquele gatinho do Shrek.

Peculiaridades humanas:
- a transformação gradual de um agente terráqueo em um extraterreste. Lembra o filme kafkiano de Cronemberg, “A Mosca”, só que sem Cronemberg e o Jeff Goldblum. Ou seja, pouco se salva.

Comentário pessoal: Se fizeram com que o E.T. fosse crível, se fizeram com que Jurassic Park fosse crível, se fizeram com que Lord of The Rings fosse crível, se fizeram com que Avatar fosse crível, porque afinal, ainda que isto seja dito por alguém beirando os quarenta, porque não se pode exigir que também sejam críveis os demais filmes de ficção, sejam eles sobre heróis ou extraterrestres, como esse fajuto Distrito 9?

Obs: a curiosidade fica por conta da polêmica envolvendo a proibição do filme na Nigéria. O roteiro traz nigerianos fazendo rituais vodus com partes de membros alienígenas. Tráfico de armas e prostituição – entre as espécies – reforçam o boicote.

Para debate: apesar da enorme falta de bom senso da obra, que causa dificuldade em assisti-la na íntegra, há um questionamento ético interessantíssimo aqui. A ética contemporânea lida com discussões sobre a legitimidade da matança de animais para o consumo humano. Sob esta perspectiva, que tipo de tratamento adotar em relação aos extraterrestres, caso realmente existam? No filme, sociólogos e organizações dos direitos humanos se opõem às agressões que a população local e as autoridades infligem aos monstrengos. Ainda que os motivos dos conflitos possam parecer risíveis – e de fato o são –, a indagação é pertinente pois, para efeitos legais, os atos importam mais que suas motivações: os seres agem como gangues de marginais, roubando tênis, celulares e ração para gatos.

ruínas

























[ou poema primeiro]

o tempo e as

músicas daqueles tempos: fumaça do frio na boca na travessia da ponte

leque do rio

luvas e mãos nos bolsos

o mesmo caminho as mesmas ruas os bombardeios: erosão humana

viver e morrer em três corações





































Filmes de Ontem e Hoje:


Ensaio sobre a cegueira










"Um ensaio sobre a visão”

Em sua obra “A linguagem secreta do cinema”, o crítico Jean-Claude Carriére nos conta um episódio singular ocorrido no início do século passado, quando se dava a exibição de um filme numa das colônias francesas na África. Alguns convidados, por questões diplomáticas, compareciam às sessões, mas, por serem muçulmanos, sua rígida tradição os impedia de presenciar representações de formas e da face humana, tarefa esta reservada única e exclusivamente a Deus, no caso, a Alá – não por acaso adotam um alfabeto ornamental para suprir esta falta de figuras. Assim, sentavam-se em suas cadeiras e lá permaneciam, de olhos fechados.
Num momento em que observamos o caos da Faixa de Gaza e os conflitos entre israelenses e ativistas turcos com o mesmo interesse e inclinação que temos em relação ao caos dos fevereiros da Marquês da Sapucaí, somados ao insulto visual dos programas televisivos em que câmeras são estrategicamente instaladas numa casa em que a lógica do Hobbes (“o homem lobo do homem”) vigora, ficamos a pensar no verdadeiro significado da visão e se, caso fôssemos subtraídos de tal capacidade, dela sentiríamos falta já que não a usamos de forma, digamos, crítica.
Em “Ensaio sobre a Cegueira” o gênio Fernando Meirelles – por causa dele podemos lançar fora quase tudo o que se produziu no tal “cinema” brasileiro desde os tempos de “O Pagador de Promessas” – audaciosamente nos mostra isto mesmo que o título sugere, um ensaio de como o ser humano agiria se, repentinamente, perdesse sua visão. É lógico que aquela história de ser fiel ao livro é uma bobagem e fica até engraçado quando nos extras vemos um apreensivo Meirelles acompanhar atentamente as palavras de aprovação pronunciadas, na poltrona ao lado, por ninguém menos que o escritor Saramago, autor da obra em que o filme se baseou. A versão que a ele foi mostrada sofreu várias alterações, até alcançar o formato que tem hoje, mas de modo geral, a essência está lá, pessoas desesperadas, com a visão submersa numa espécie de cegueira branca, num “mar de leite” que, atingindo o grau de peste iminente, faz com que o governo adote medidas extremas, confinando em alojamentos especiais os que dela são portadores.
É claro que ainda não inventaram um filme que superasse o livro. Mais difícil ainda quando este é escrito numa prosa mordaz, sem pontuação, e que os personagens sequer possuem nomes próprios, mas títulos como “a mulher do médico” e “o velho da venda preta” ou até mesmo “o ladrão”.
Mas o compromisso de se aproximar o máximo do original foi cumprido. O que justifica o caos de imagens retorcidas e propositalmente brancas, transparentes, como reflexos do reflexo de espelhos ofuscados por alguma claridade – a da caverna de Platão, talvez –, acompanhadas pela trilha originalíssima do Uakti (outro ponto positivo) e pela atriz Juliane Moore, pálida, aquática como uma água-viva, flutuando na tela. Ninguém mais poderia ocupar este papel, ninguém. A ela caberá a missão de encontrar, nas profundezas emocionais do desastre iminente, a cumplicidade necessária para que se possa dar forma não ao mundo, mas à esperança. O que ela faz quase como um idealismo milagroso, em meio à ordem maltrapilha vigente.
A espécie humana, aqui, se aproxima gradualmente da animal; um pouco mais evoluído, conquanto ainda possua linguagem, embora esteja tão próxima da bestialidade que seria uma questão de tempo até que todos passassem a grunhir. É inversamente proporcional, por exemplo, ao que ocorre com o apóstolo Paulo (episódio citado no filme) que, no contexto cristão, somente depois de ficar cego é que passou de fato a enxergar.
No filme, a válvula de escape para a ausência de fé, como não poderia deixar de ser, é o instinto, que irá alertá-los sobre sua necessidade mais básica, a de se alimentar, o que possibilitará a provisória manutenção da vida – depois também virá o sexo, ironicamente feito “às claras”, tal como os Cínicos da Grécia antiga – mesmo que, assim como nos animais, não se saiba exatamente porque, como aliás em muita gente que anda por aí, como zumbis que pronunciam o mantra “alá-lá-ô, alá-lá-ô”.
E é pela comida que as mulheres tem de se submeter às violências do grupo detentor dos estoques. Cena forte do livro e que em cinema foi em muito amenizada, deixa também evidente o talento de Meirelles em realizar cenas polêmicas sem precisar de toda aquela apelação características de produções nacionais e que, de certo modo, poderia mesmo ser adotado como padrão, evitando, de uma só tacada, o surgimento de futuras beldades da poluição visual como as Lucélias Santos, Veras Fischers e Sônias Bragas de outrora.
Ali, a relação de poder entre os detentores do alimento e os estômagos famintos se torna um microcosmo, que é também a realidade que a grande massa de trabalhadores enfrenta já que, à recusa ao trabalho implica à morte por inanição. Esta é a lei, o status quo, a democracia do lento genocídio, enfim, porém desvelada. Não se pode vê-la porque se é cego, mas pode-se senti-la nas carnes.
Então é mais um ponto já que o problema não é apenas a cegueira visual, mas de um outro tipo, de outra natureza: a cegueira da cegueira. Mesmo estes cegos não são capazes de compreender que apenas mediante a colaboração mútua é que suas vidas poderiam melhorar, ao menos o suficiente para se estabelecerem como uma nova sociedade – a de cegos agora – e aprimorar suas deficiências a ponto de reiniciar e construir uma nova civilização. Por isso é tão chocante o filme de Meirelles (ou o livro de Saramago). Por tocar a dolorosa e trágica ferida por trás da metáfora: já estamos neste estágio de cegueira e seria preciso reaprender a enxergar, processar as coisas, repensá-las e relacionar-se com elas, de modo a modificá-las em toda sua extensão. Daí que enxergar passa a ser também viver, existir, e existir de modo verdadeiro, milagroso e correto. Enxergar passa a ser virtude. Talvez a mensagem mais cruel e bela do filme.
Em uma cena marcante, certo personagem ao ter sua visão restabelecida por algum motivo misterioso, exclama ao ver o rosto de uma amiga, de quem até então apenas conhecia a voz, presente nos maus bocados do alojamento de cegos. E ele exclama entusiasmado: “você é linda!!! Tudo é lindo!!!”. Como se tivesse sido presenteado, no caso, com a imagem de um simples rosto. Como diziam os antigos gregos: estamos cercados de tanta beleza. Esta que para eles era o Cosmos e que originou a palavra cosmético.
Quando Carriére, citado no início do texto, escreveu seu livro, alegou que o único propósito era nos ajudar a abrir um pouco mais nossos olhos. Já Saramago nos alerta: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”. Estamos vendo demais e enxergando de menos. O que constitui, aqui, uma grande responsabilidade. Talvez por isso, não por uma questão de prudência ou reverência, mas pela mais pura covardia mesmo, muita gente opte por ficar como os tais espectadores muçulmanos. De olhos bem fechados.