Penso no Cogito cartesiano, quero terminar este trabalho, sinto em minha mão o frescor do papel, através da janela percebo as árvores da avenida. A cada momento minha vida precipita-se em coisas transcendentes, ela se passa inteira no exterior. Ou o Cogito é esse pensamento que se formou há três séculos no espírito de Descartes, ou é o sentido dos textos que ele nos deixou, ou enfim uma verdade eterna que transparece através deles, de qualquer maneira ele é um ser cultural para o qual meu pensamento antes se dirige do que o abarca, assim como meu corpo em um ambiente familiar se orienta e caminha entre os objetos sem que eu precise representá-los expressamente. Este livro iniciado não é uma certa reunião de ideias, para mim ele constitui uma situação aberta da qual eu não saberia dar a fórmula complexa, e em que eu me debato cegamente até que, como que por milagre, os pensamentos e as palavras se organizem por si mesmos. Com mais razão ainda os seres sensíveis que me circundam, o papel sob minha mão, as árvores sob meus olhos, não me entregam seu segredo, minha consciência se esvai e se ignora neles. Tal é a situação inicial da qual o realismo tenta dar conta ao afirmar a transcendência efetiva e a existência em si do mundo e das ideias.
Todavia, não se trata de dar razão ao realismo, e há uma verdade definitiva no retorno cartesiano das coisas ou das ideias ao eu. A própria experiência das coisas transcendentes só é possível se eu trago e encontro em mim mesmo seu projeto. Quando digo que as coisas são transcendentes, isso significa que eu não as possuo, não as percorro, elas são transcendentes na medida em que ignoro aquilo que elas são e em que afirmo cegamente sua existência nua.
Maurice Merleau-Ponty – Fenomenologia da Percepção.
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