Chantilly demais para bolo de menos.
Outubro de 2011 chegou e havia a grande expectativa do novo cd do M83. Desta vez, um disco duplo, com 11 músicas de cada lado. Havia este clima de Smashing Pumpkins em Mellon Collie and the infinite sadness (1995) no ar, mas que se esvaiu logo na primeira audição. Afinal, por que compor um grande número de músicas que denotam a falta de inspiração se o M83 poderia ter feito um grande disco com, no máximo, dez composições?
Vamos analisar as músicas individualmente para que nosso ponto de vista seja esclarecido:
Intro: possui arranjos belíssimos dos bons M83 de sempre. O vocal gritado dá o tom de que a mão vai pesar, e já começa a incomodar a pergunta: será que vai ser assim no cd inteiro? Intro também tem outro agravante: é muito extensa para o pouco que tem a oferecer. Se ela tivesse dois minutos a menos, ficaria melhor. A parte que entra um coro é terrível-terrível-terrível-terrível-terrível...enfim, sabe este efeito cansativo que provocamos repetindo as palavras. Pois é, é disso que se trata.
Midnigh City: este é o M83 que queríamos. Uma boa música, eficiente. Sem arroubos. Li artigos que criticavam sua mornidão e o saxofone sintetizado do final. Se ela parecer morna para alguns, morno deveria se todo o cd e aí teríamos uma obra coerente.
Reunion: o pior momento. Principalmente dos vocais, gritados a esmo, sem qualquer tipo de charme. Se a ideia era revisitar os anos 80, deu saudade do empolgante papá-rá-ô de Alive and Kicking, do Simple Minds. Aquilo sim era um refrão de nível.
Where the Boats Go: vinheta sombria, mas belíssima. Dá o toque do que virá a seguir.
Wait: essa é uma canção ímpar, até pelo fato de conter um violão. Chega a ser dolorosa de tão bela. Mas não é perfeita porque poderia ser um minuto mais curta. A mão pesada causa stress no ouvinte. Talvez fosse o caso de Anthony Gonzalez , o cérebro da banda, construir um cd com todas as vinhetas de Hurry Up, deixando somente esta música, com um minuto a menos. Teríamos uma obra de arte!
Raconte Moi Une Histoire: café com leite, com um momento de brilhantismo shoegazer da metade em diante.
Train to Pluton: vinheta que poderia ser prolongada, sem nenhum prejuízo de causa.
Claudia Lewis: tem a batidona anos 80, que lembra coisas meio funkeiras, como se a Shellshock do New Order, do Substance, encontrasse a Lisa Lisa de “Rhitmyn and Gonna Get You”. O vocal é chatíssimo, esganiçado, afeminado. Eject.
This Bright Flash: guitarras sonoras, baterias secas, uma ou duas linhas de baixo, e um vocal morto, chapado, balbuciando meia dúzia de palavras. Curtíssima, dá seu recado em dois minutos. Esse critério deveria ser adotado no restante do Cd.
When Will You Come Home: instrumental belíssimo. As vinhetas fazem a abertura para as músicas, ou será o contrário? O título remete, pelo nome somente, ao grande hino dos Galaxy 500, que também gostavam de esticar uma melodia até que ela se tornasse ruim. O M83, quando pesa a mão, segue a receita.
Soon, My Friend: resposta à pergunta anterior, é perfeita no primeiro minuto, até a entrada do violão. Depois, de novo a enrolação com ares de apoteose instrumental. Fiasco.
My Tears Are Becoming: instrumental quase perfeito, exceto pela escorregada pinkfloydiana. Mas tem um arranjo shoegazer cortando o final. Infelizmente o vocal é ridículo, que destoa de tudo. Como uma gralha num campo florido.
New Map: recupera o feeling da banda. A segunda música do segundo cd é tão eficiente quanto sua correspondente do primeiro. Mas é muito melhor. E tem um refrão suave, que era tudo o que estava faltando em meio à gritaria assimétrica. O minuto final é uma pérola de espontaneidade e sutileza. Vale cada segundo.
Ok Pal equivale à Reunion. Desperdício de barulho e de eletrônica. Muita frescura para uma só música. Terrível.
Another Wave from You: climático, como no que havia de melhor no cd instrumental Digital Shades.
Splendor: piano espaçado, vozes mais calmas – podia ser sempre assim. Mas entra um coro horroroso logo no primeiro minuto, jogando às traças tudo o que poderia tornar a música uma grande composição e não uma composição grande. Mas o coro cessa, o andamento suave prossegue. Se pudéssemos tirar essas sobras, como aquele enjoativo chantilly, que enfeita o bolo. Uma música de cinco minutos, que não precisava mais do que três. Não, não foi nada esplendoroso.
Year One, One UFO: momento musical bem humorado. A pegada rockeira no final não a torna mais empolgante. É fria como uma colher, um garfo, e uma faca, o gelo batendo no cristal, a maquininha do dentista na obturação.
Fountains: Onírica, como num passeio em um bosque que só existe no mundo dos sonhos. Vale novamente a pergunta: a vinheta anuncia a música, ou a música anuncia a vinheta?
Steve McQueen: Canção animada. As onomatopéias são mais vibrantes. O doobi-doobi-doobie-doob-doobie mesclado ao ô-ê-ô-ê-ô-ô ressuscita defuntos. A base guitarrística é marcante, a pegada sonora shoegazer é o que há de melhor nos M83. A paradinha final é maravilhosa: doobi-doobie-doobie-doobie-doobie, com direito a estalar de dedos.
Echoes Of Mine: é o conhecido teaser, belíssimo. Dessa vez, com uma narrativa feminina. É apoteótica, sem ser pretensiosa. Funciona e muito.
Klaus I Love You: uma profusão de sons, vocais abafados por estruturas de prédios bladerunnernescos e Bips e blens kraftwerkianos. Em menos de dois minutos somos levados a uma atmosfera de estranhamento. Afinal, quem é este tal de Klaus?
Outro: uma música de encerramento que não faria falta alguma.
Pelo que dissemos, “Hurry Up...” é um disco de mediano a fraco, pelo tanto que tem de se apoiar em vinhetas. Tem lá seu encanto, e um ou outro lampejo. Mas isto é típico de sobras lados B de bandas caça-níquel. Sim, o M83 já é conhecido por fazer músicas quilométricas, com até mais de dez minutos. Mas este último foi, sem dúvida alguma, um desperdício de munição. Talvez este tributo egocêntrico resulte em maturidade, o que não deixa de ser um problema interno dos integrantes, mas que ecoa no ouvido dos admiradores que só querem ouvir boa música.
De qualquer maneira o M83 sempre será uma banda (um duo, um trio, uma banda de um homem só?) pelo qual temos de ter muito respeito. Oscilando entre o rock experimental eletrônico e o pop, entre o sagrado e o poético, o etéreo e o denso, o instrumental de ascese e a tempestade shoegazer, o romântico e o irônico, canções sempre e sempre inteligentes, as maravilhosas composições de álbuns anteriores, como as ultraimponentes Running Into Flowers, Beauties Can Die, I Guess I’m Floating, Can’t Stop, Let Men Burn Stars, Waves, Coloring The Void, By the Kiss, Strong and Wasted, We Own The Sky, The Dark Moves of Love, Don’t Save Us from the Flames, fazem muito bem aos ouvidos da civilização contemporânea, carente que é de beleza bruta. Talvez estas mesmas músicas é que nos elevem a um alto grau de exigência, e por isso ficamos esperando sempre o melhor do trabalho deles. Ouvindo seus cds anteriores passamos a ter uma percepção melhor do que a banda significa, e compreendemos que talvez já seja possível vislumbrar um conjunto da obra, e que tudo aquilo já foi demais. Se eles irão compor o panteão de bandas que se contentam em fazer obras medianas, ao menos agora percebemos mais nitidamente que aquilo que fizeram já foi mais do que suficiente para que estes poéticos músicos ocupem um lugar profundo e definitivo em nossos inconstantes corações.