segunda-feira, 31 de outubro de 2011

A imaginação


A Imaginação - Jean-Paul Sartre


            Olho esta folha em branco, colocada sobre minha mesa: percebo sua forma, cuja cor, sua posição. Essas diferentes qualidades têm características comuns: em primeiro lugar, elas se oferecem ao meu olhar como existências que posso apenas constatar e cujo ser não depende de modo algum do meu capricho. Elas são para mim, não são eu. Mas elas tampouco são outrem, isto é, não dependem de nenhuma espontaneidade, nem da minha, nem da de uma outra consciência. Estão presentes e inertes ao mesmo tempo. Essa inércia do conteúdo sensível, tão freqüentemente descrita, é a existência em si. De nada serve discutir se essa folha se reduz a um conjunto de representações ou se ela é e deve ser algo mais. O certo é que o branco que constato não é minha espontaneidade que pode produzi-lo. Essa forma inerte, que está aquém de todas as espontaneidades conscientes, que deve ser observada, aprendida aos poucos, é o que chamamos uma coisa. De modo nenhum minha consciência poderia ser uma coisa, porque seu modo de ser em si é precisamente um ser para si. Existir, para ela, é ter consciência de sua existência. Ela aparece como uma pura espontaneidade diante do mundo das coisas que é pura inércia. Podemos, portanto, afirmar desde a origem dois tipos de existência: de fato, é na medida em que são inertes que as coisas escapam à dominação da consciência; é sua inércia que as salvaguarda e que conserva sua autonomia.
            Mas eis que agora viro a cabeça. Não vejo mais a folha de papel. Agora vejo o papel cinza da parede. A folha não está mais presente, não está mais . Sei, no entanto, que ela não se aniquilou: sua inércia a preserva disso. Ela deixou simplesmente de ser para mim. Ei-la de novo, porém. Não virei a cabeça, meu olhar continua voltado para o papel da parede; nada se mexeu na peça. Contudo, a folha me aparece de novo com sua forma, sua cor e sua posição; e sei muito bem, no momento em que ela me aparece, que é precisamente a folha que eu viapouco. É realmente ela em pessoa? Sim e não. Por certo afirmo claramente que é a mesma folha com as mesmas qualidades. Mas não ignoro que essa folha permaneceu no seu lugar: sei que não usufruo de sua presença; se eu quiser vê-la realmente, preciso virar-me para a escrivaninha, preciso trazer de volta meu olhar ao mata-borrão onde a folha está colocada. A folha que me aparece neste momento tem uma identidade de essência com a folha que eu viapouco. E, por essência, não entendo apenas a estrutura, mas também a individualidade mesma. que essa identidade de essência não é acompanhada de uma identidade de existência. É exatamente a mesma folha, a folha que está agora sobre minha escrivaninha, mas ela existe de outro modo. Não a vejo, ela não se impõe como um limite à minha espontaneidade; não é tampouco um dado inerte que existe em si. Em uma palavra, ela não existe de fato, ela existe em imagem.

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