Further, último CD do Chemical Brothers, é convite à felicidade.
O Chemical Brothers, dupla de DJs britânicos formada por Ed Simons e Tom Rowlands, lançou seu sétimo cd, Further, no final de Junho deste quase saudoso ano de 2010. Talvez pela preocupação geral com aquela grande bobagem que é a Copa do Mundo de futebol, o fato é que o lançamento passou despercebido e, tendo-o descoberto recentemente sob o crivo de pouquíssima crítica decente, vi-me na obrigação de escrever algo a respeito.
Para um diletante desavisado que considerava a melhor experiência sonora de 2010 o show que a TV exibiu do Paul MacCartney – sobretudo nas execuções de Live or Let Die e da incendiária Helter Skelter, esta que serviu de base para muito do que se fez de pesado, veloz e visceral no universo do rock desde então – a audição do cd do Chemical foi uma grata surpresa, tão impressionante quanto a apresentação do veterano beatle. Não se trata de uma comparação de gêneros, evidentemente, mas da constatação da grandiosidade de cada artista em seu respectivo segmento. No caso do Chemical, lembremos aqui a constante referência – e reverência – que se tornou para os DJs o quarteto de Liverpool no uso de batidas e cítaras de sua fase mais lisérgica, como é fácil constatar, por exemplo, em Setting Sun, incluída no cd Dig Your Own Hole, de 1997, extraída de Tomorrow Never Comes (Revolver, 1966).
Para quem não conhece, o Chemical faz música eletrônica e, em suas produções, mesclam diversos gêneros musicais. Do trance ao big beat, fazem de tudo um pouco e, quando querem, muito barulho, o que lhes garantiu uma grande simpatia do público rock – os menos tradicionais, claro – e de interessados nas novas métodos de composição musical tendo como amparo as tecnologias e a criatividade utilizada na combinação de sons, melodias e efeitos. Sim, é música feita por não-músicos. E qual o problema? Alvo de debates desde longa data, o fato é que o uso de samplers foi responsável pela elaboração de grandes hinos nas pistas, estádios e festas raves pelo mundo todo. Se já em 1986, o poeta-profeta Morrissey, admirador de Oscar Wilde e líder dos Smiths, cantava em Panic “hang the DJ, because the music that they constantly play say nothing to me about my life” (enforquem o DJ, porque as músicas que eles tocam não tem nada a ver comigo e nem com a minha vida), o tempo provou que ele estava errado. De igual maneira enganou-se o ícone soul Isaac Hayes, um dos artistas mais visados pelos samplers – até os Racionais MC’s copiaram trechos de uma de suas canções no épico Sobrevivendo ao Inferno (1997) – ao declarar certa vez que, se todos ficassem copiando as músicas alheias, chegaria a um ponto em que ninguém faria nada de novo. A resposta está em Further, em que mais uma vez, comprovamos a incrível capacidade destes dois DJs em construir bons e inesquecíveis momentos de qualidade artística nesta babel de signos e significados que se tornou – graças a eles mesmos – a música pop contemporânea.
Acostumados a trabalhar com participações de vocalistas de peso em seus discos – Beth Orthon, Bernard Summers (New Order), Richard Aschcroft (Verve), Noel Gallaher (Oasis), Bob Gillespie (Primal Scream) e a angelical Hope Sandoval (Mazzy Stars) – o que demonstrava uma forte tendência de eles terem músicas cada vez mais cantadas em seus discos, em Further dispensaram o uso de letras extensas e privilegiaram a construção de camadas e mais camadas sonoras, acompanhadas de pequenas refrões e uma mescla de raios laser, blips, sons esotéricos, gaita de fole, relinchos de cavalos equalizados à enésima potência. Na abertura, a climática e hippie Snow traz a declaração mântrica “your love keeps lifting me, lifting me higher” (seu amor continua me elevando, cada vez mais alto), fórmula que irá se perpetuar ao longo do cd. Esta lenta introdução conduz às batidas dançantes da envolvente Escape Velocity, com seus teclados antigos que lembram os anos 70 e os shows ancestrais de Deep Purple ou mesmo Doors. A pérola Another World, em seguida, surge com o anúncio “we will move to another observation point” (nos moveremos para outro ponto de observação), que soa como uma desaceleração, pausa necessária que nos conduzirá ao lamuriante e colante refrão “another world will surrond me, another heart will forgive” (outra existência irá me envolver, outro coração será esquecido), obra-prima do gênero, que evoca um clima discoteca, bastante ingênua, tristemente bela e em direção às cores, em que um sintetizador house, concreto denso que se dilui à medida que vai fincando uma estaca no coração, é acompanhado de duas imensas batidas, que surgem em momentos esparsos, como que a encerrar dramas em definitivo, conduzindo a composição a um cume estético luminoso. A introdução quebrada poderá causar estranhamento, como se algo estivesse descompassado. Mas é absurdamente proposital, pois faz da música a vibração contínua de um sentimento em desalinho com um certo ideal inatingível, platônico, ao mesmo tempo em que nos convida a ir adiante, em direção à uma felicidade possível. E toda ela, no auge, envolvida num coro de “lá-ri-lá-ri-lá-ri” como poucas vezes os ouvidos – e o cérebro – e a semântica reivindicaram.
Ao desfecho de Another World, segue-se a britpop de contrabaixo ruidoso Dissolve, que irá se chocar de frente com a muralha bate-estaca da robótica Horse Power. É uma construção previsível visto que eles já usaram esta fórmula outras vezes. Mas o mergulho adiado de Dissolve se dará de vez no balanço da ultra charmosa Swoon, uma festa pura com sua ousada palavra de ordem “just remember to fall in love, there´s nothing else” (apenas lembre-se de se apaixonar, e nada mais), cujo ritmo lembra a obrigatória Wanna Be Startin’ Somethin’ de Michael Jackson (Thriller, 1982).
Já os ritmos tribais de K+D+B ameaçam uma ascensão anunciada “see them rise, and higher” (vejo-os subir, e mais alto), mas que não ocorre por causa dos efeitos glaciais, como os de um Radiohead em Kid A (2000), muito prolongados e destoantes, tanto dos sintetizadores quanto dos vocais. Mas tudo isto é resolvido com os acordes de guitarra e sussurros etéreos que povoam a derradeira Wonders of Deep, uma espécie de tributo shoegazer aos anos 80. Como nos cds contemplativos dos franceses do M83 (outro duo eletrônico), tais brados celestiais nos aproximam de anjos e anunciam o desfecho de um dos cds mais importantes do Chemical Brothers, esta genial dupla de DJs em sintonia com a linguagem contemporânea que remonta a Lavoisier – nada se perde, nada se cria, tudo se transforma – e que ajudaram a forjar. Engana-se quem poderia achá-los datados diante de um Tiesto, por exemplo, o DJ número um dos últimos anos. Talvez daí mesmo venha o motivo do título, Further, que significa “mais além”. Se o Chemical está apontando para uma nova direção, para além dos métodos atuais de se conceber arte, isto não fica explícito. O que temos muito claramente aqui é o tempo atual, urbano, célere, globalizado e multicultural. Talvez estejamos diante de um recomeço, em que o “mais além” é celebrar a urgência da vida no agora.
Assim, os 52 minutos de Further, distribuídos em oito composições, são mais que suficientes para se concretizar como uma elevada experiência sonora, e altamente recomendados para correr, estudar, ler, escrever, amar, dançar e dançar e dançar. E dançar muito. E tudo isto junto, mil vezes, novamente.
Se, portanto, alguém opina que toda música variegada nada significa para ele, que só consegue fruir música dançante ou canção para cítara, isso é justamente carência de formação (Schopenhauer, Metafísica do Belo).